Você só dança com ele e diz que é sem compromisso
Em: 19/11/2023, às 22H25
Termino a leitura, pensando que cemitérios e composteiras são quase a mesma coisa.
[Cláudio Trasferetti]
Tive muito o que conversar com o livro “A Jaca do cemitério é mais doce”, de Manoel Herzog. Os assuntos brotavam sem parar. Cito aqui alguns poucos.
Falamos sobre compostagem, assunto que me interessa. Tenho até alguma experiência nessas transformações regidas pela Lei de Lavoisier. Penso na quantidade de nutrientes que existem em cascas de frutas, folhas desprezadas de verduras, cascas de ovos, borra de café. O homem joga fora o que outros bichos e vegetais prontamente absorveriam.
O livro me apresentou duas jaqueiras: uma que era um bonsai e outra, frondosa, que ficava no cemitério das polacas. Pude entendê-las um pouco já que tenho uma amizade de longa data com uma jaqueira. Parece que a do cemitério existe de verdade, mas o bonsai de jaca acho que é ficcional. Intuitivamente, a jaqueira, por ter frutos tão grandes, não parece adequada a um bonsai, mas vá saber...
Tenho uma relação instável com os bonsais. Acho admiráveis, mas, às vezes, me deixam desconfortáveis. Já aconteceu de, como uma personagem do livro, sentindo pena por conta das podas intermináveis, plantei os meus bonsais no chão e deixei-os crescer à vontade.
Outra conversa que fluiu foi sobre as polacas, as prostitutas judias do leste europeu que atuaram em Buenos Aires, no Rio, em São Paulo e no porto de Santos no início do século XX. Sabia sobre elas desde que assisti um filme nacional chamado “Sonhos Tropicais”, de André Sturm, e que li sobre a mãe do Jacob (!) do Bandolim. Desprezadas pelos cristãos por serem judias e pelos judeus por serem putas, nenhum cemitério aceitava as polacas. O jeito foi se organizarem para criar cemitérios exclusivos a elas, numa prova de coragem e união.
Conversamos também sobre trilha sonora. Gosto muito de fazer associações entre livros e canções, mas esse já veio com o trabalho pronto. O livro é muito musical e tem uma playlist embutida no texto, cheia de canções conectadas de maneira nada aleatória à trama.
Mas sim: e a trama? O livro trata da vida de Santiago, aposentado por invalidez ainda jovem, que mora num apartamento em Cubatão com Chantilly e Morcego, seus gatos de estimação. Não é de todo solitário, recebe visitas de duas “namoradas” e ex-colegas de trabalho e interage com a doméstica Marcleide, com o pedreiro Beneval e seus ajudantes. Obsessivo por sua composteira, passa o tempo rememorando seu passado de operário da indústria química de Cubatão, de praticante de danças de salão e, sobretudo, sua relação amorosa com Natércia: seu belo começo e seu amarguíssimo final. Diria que Santiago tem um tanto do Dom Casmurro e um outro tanto do Otelo. Há alguns Iagos na estória e a Desdemona talvez não fosse tão inocente assim.
Foi o primeiro livro de Manuel Herzog que li e fiquei muito bem impressionado pela maneira com a qual a estória foi conduzida, por seu texto, ao mesmo tempo acessível, sofisticado e inventivo, e pelos temas que escolheu. Termino a leitura, pensando que cemitérios e composteiras são quase a mesma coisa.