Vida de vaqueiro nordestino

                    [Constâncio Furtado Rêgo]

Francisco foi vaqueiro durante toda sua vida. Amava o gado alheio e as suas miúças. Casou-se com Ana e com ela teve quatro filhos: Fernando, Fátima, João e Joaquim. No último parto, Ana ‘quebrou o resguardo’, ficou desorientada e cegou.

O esposo arranjava pessoas para cuidar da casa e dos filhos pequenos. Na adolescência Fátima assumiu os afazeres da mãe, enquanto os irmãos passavam à vaqueirice junto ao pai, menos Fernando, que procurou outro ofício.

Os rapazes foram casando e, com o tempo, somente João permaneceu junto do pai. A nora Chaguinha substituiu sua cunhada, tendo em vista que Fátima desposara um jovem comerciante do município de União – Piauí e o seguiu. Algum tempo depois de casado, João recebeu uma proposta para tomar conta de uma boa fazenda de gado e também resolveu ir embora, comprometendo-se, contudo, a cuidar da sua mãe que vivia pelas mãos dos outros. Neste caso, Francisco teria o caminho livre para seguir o seu destino com qualquer mulher que estivesse disposta a servi-lo, cuidando dele como um verdadeiro esposo.

A fazenda Água Vermelha, localizada no Município de Barras do Marathaoan no Estado do Piauí, da qual Francisco cuidava, já havia sido negociada algumas vezes e com o decorrer do tempo o gado diminuía, seguindo os padrões de decadência dos latifúndios piauienses. Mas, Francisco continuava firme no seu posto de homem correto, trabalhador, zeloso, respeitador e cumpridor das suas obrigações. Apesar das inúmeras qualidades continuava pobre, como, aliás, costuma acontecer com tantas pessoas honestas.

Pouco tempo depois, Chico colocou dentro de casa uma mulata trigueira, muito jeitosa, separada do marido e que trouxe consigo três filhas menores. Mulher carrancuda, todavia, esperta, trabalhadora, dedicada às coisas da Fazenda e às criações. Cuidava bem do vaqueiro que a trouxera para a casa da fazenda juntamente com as suas meninas e isto dava certo conforto aos filhos de Chico que deixavam de se preocupar com o pai.

O último patrão de Francisco foi um importante político piauiense. Ambos tinham a mesma idade, igual mansidão e talvez por isso tenham se dado tão bem. No entanto, a senhora do parlamentar não simpatizava a companheira do seu empregado, cujo comportamento achava arrogante e por esse motivo desejava ver fora daquela casa, o vaqueiro que ali envelhecera. Alegava inclusive que Água Vermelha fora adquirida com recursos oriundos de herança que recebera da parte da família dela. O político, por sua vez, tolerava e permanecia indiferente às birras e exigências de sua Senhora, em virtude da grande amizade que conservara com o vaqueiro ao longo de décadas, bem como em decorrência do fato de pensar na situação do homem de idade avançada – o que seria difícil, senão impossível, um convite no sentido daquele velho homem do campo vir tornar-se novamente vaqueiro de uma outra fazenda.

As filhas de Joana que chegaram à fazenda ainda crianças haviam casado. Tinha agora ali, dois garotos: Sérgio e Pedro e uma menina que atendia pelo nome de Rosa – todos nascidos do relacionamento amoroso entre Joana e Chico.

O gado da fazenda minguava, os patrões restringiam cada vez mais suas visitas à propriedade. Para sustentar a família, Chico cuidava de animais de outros criadores. Assim, juntando rês de um e de outro, ia recebendo ‘quarto de cria’, o que amenizava a situação.

Joana fazia um pedaço de roça todos os anos para auxiliar no sustento da casa e dessa forma a vida seguia. O homem já idoso se apegava cada vez mais aos filhos pequenos, principalmente Sérgio, o mais velho deles, que já o acompanhava na campeação.

O filho João, que também foi vaqueiro durante muitos anos, deixou seu emprego e retornou para as proximidades de Água Vermelha onde se criara. Ali, comprara um sítio e foi residir com a esposa e sete filhos.

Certo dia, Francisco recebeu o recado de um empresário da cidade de Barras, dizendo que precisava vê-lo. Chico saiu pela manhã, ia esperançoso, pois o cidadão que o convocara era possuidor de fazendas de gado... quem sabe, não gostaria de entregar-lhe algumas cabeças para cuidar.

Chegando à empresa, Chico se apresentou ao ricaço que logo lhe disse:

- Senhor Francisco, tenho um comunicado a lhe fazer. Esta semana comprei a fazenda Água Vermelha. O seu ex-patrão me encarregou de agradecê-lo pelos serviços prestados a ele durante todos esses anos. Vou lhe dar as partilhas.  Já tenho um vaqueiro para substituí-lo... daqui a um mês ele receberá a fazenda. Espero que este prazo seja suficiente para o senhor providenciar sua mudança.

- A propriedade é sua Doutor, entregarei tudo no prazo marcado... é só isto que deseja me dizer?

- É, ficarei em contato com o senhor.

Francisco ‘foi no outro mundo e voltou’. E agora? Para onde iria um vaqueiro velho com mais de setenta ‘janeiros nos couros’, três filhos menores para sustentar e uma mulher a quem se apegara afetivamente?

Pelo caminho de areia que combinava com a brancura dos seus cabelos, Chico ia pensando como dar a notícia em casa e, pior ainda: onde iriam morar? Será que Joana continuaria com ele, agora já sem forças para colocar o pão na mesa da família? Aquela era uma situação pra lá de constrangedora. Se fosse um cachaceiro, Chico teria encostado num boteco qualquer e ‘enchido a cara’ a fim de espantar a vergonha que sentia ao retornar para sua residência. Entretanto, nunca colocara um gole de pinga na boca – o seu único vício era tão somente o ‘fumo de corda’ parnaibano que gastava no queixo. Os últimos acontecimentos, no entanto, não permitiram que Chico erguesse a cabeça. Agora havia ali um homem derrotado pelas consequências da vida e esmagado pelo peso da idade. Infelizmente, para sua desgraça, tivera por destino, a sorte e o azar de dedicar toda a sua vida à profissão de vaqueiro - uma classe que não possuía até então, nem ao menos o direito a uma aposentadoria.

Chegando na Fazenda, Chico contou à família que deixariam Água Vermelha no prazo de um mês - a casa que ele morou desde que desposara Ana, em 1912,  deveria ser desocupada.  A mesma residência onde criara seus filhos legítimos, enteadas e vivia com filhos naturais, cujo destino apresentava-se agora cheio de incertezas.

Ao receber a notícia, Joana começou logo a fazer os planos:

- Pois vamos vender as nossas criações e o resto do gado. Amanhã vou procurar um pedaço de terra pra gente morar, assim desocuparemos a casa do homem.

- Procure o terreno que eu me encarrego de vender as criações, o gado e o cavalo – falou Chico.

Assim fizeram: compraram um terreninho que estava à venda ali nos arredores. No prazo determinado já se encontravam em uma casinha de adobo, coberta de telha e madeira roliça. Mas, e agora, que meios teriam para sobreviver, sem nenhum ‘cabelo de nada’ a que recorrer num momento de necessidade? As reses que não pertenciam à Água Vermelha deveriam ser também cuidadas por outros, pois até o seu cavalo campeiro Chico negociara para ajudar na compra daquela nesga de terra. Juntos buscariam uma solução para o casal. Mas, a única ideia viável e possível foi a separação. Joana tentaria encontrar um homem Aposentado que aceitasse a sua companhia naquela idade para, em troca, ajudar criar seus filhos. Chico estava fora, iria morar com seus familiares.

Numa noite de lua clara, depois do jantar, Joana chamou Francisco para conversar no terreiro e disse-lhe:

- Bem Chico, a nossa vida juntos termina aqui. Conforme já conversamos, eu preciso encontrar um homem que me ajude a criar os nossos filhos e não tenho como fazer isso com você morando aqui dentro de casa. Você tem três filhos legítimos vivos, escolha com quem deles deseja morar e pode vir nos visitar sempre que tiver saudades. Todos nós vamos ficar muito tristes com a separação, mas infelizmente não temos outro jeito.

- Para mim é que vai ser mais difícil, Joana! Gosto muito de você e dos nossos filhos! Apartar-me de vocês é como deixar metade de mim aqui. Entretanto, é este o destino que se apresenta para nós. Foi muito bom todo esse tempo que vivemos juntos. É claro que tivemos nossas divergências, como todo casal... mas, você me ajudou muito, trouxe felicidade à nossa casa, deu-me três filhos maravilhosos e sobretudo me respeitou enquanto estivemos como casal. Vou embora me destruindo por dentro, com os bolsos vazios. Para sobreviver, terei que pedir. Contudo, saio da sua casa, assim como saí de Água Vermelha – de cabeça baixa pela tristeza. No entanto, com a certeza do dever cumprido! Só sinto não ter como terminar de criar nossos filhos, mas ficarei torcendo para que você faça por eles o melhor que puder. Amanhã pego a minha rede e vou para a casa do Joãozinho...  

A duzentos metros da casa onde se instalara Joana, o filho de Francisco escapava cultivando uma agricultura rudimentar num solo pobre. E assim, o ex-vaqueiro procurou a casa de João na esperança de continuar ali por perto. Todavia, não foi bem aceito pelo filho que disposto a livrar-se do pai, alegava inviabilidade de uma convivência tão próxima entre duas pessoas que viveram juntas como marido e mulher durante quinze anos e que agora haveria uma terceira pessoa entre elas... no caso, o novo companheiro de Joana. Embora o argumento de João não correspondesse totalmente à verdade, ainda assim, a lógica o apoiava.

 Quando o velho Chico chegou à casa de João, com um saco de estopa apoiado nos  ombros, carregando a rede e suas roupas surradas, pediu-lhe morada quase de forma humilhante, mas obteve a seguinte resposta:

- Papai, aqui não dá certo o Senhor ficar. Bem ao nosso lado mora a Joana com os seus filhos. Essa mulher ainda é jovem, vai querer arranjar outro homem, possivelmente esse sujeito não vai aceitá-lo dentro da casa, pode até lhe fazer uma violência por ciúmes.  O seu lugar é em Teresina, na casa do Fernando. Lá, o Senhor vai ter boa alimentação, estará perto dos médicos, tudo vai ser melhor...       

Ana, primeira esposa de Chico, vivia na casa de Fernando (o filho mais velho do casal), em Teresina, Capital do Piauí. Estava aposentado como funcionário público e era para lá que João pretendia mandar o ‘seu velho’. 

Francisco pediu e implorou a João que não o mandasse para Teresina, pois nascera e se criara na zona rural de Barras do Marathaoan, a 120 km da Capital. Ali, trabalhou e tirou seu sustento enquanto pôde... como se acostumaria na cidade onde jamais lhe passou pela cabeça um dia ir morar? A nora Chaguinha e os netos que gostavam muito do avô intercederam a favor dele, mas o filho, com o qual o velho sempre fora mais apegado, estava irredutível e o ‘empurrava para fora’. Já não bastava perder o emprego, vender suas criações, o cavalo campeador, separar-se da mulher por quem se apaixonara, os filhos com quem se preocupava... agora teria inevitavelmente que se apartar de tudo e viver da vontade dos outros. Não teve apelo: Chico foi para a Capital, nem podemos dizer simplesmente obrigando a natureza, mas, de corpo, coração e alma contrariados, sujeitando-se às mudanças de hábitos e comportamentos que lhe fossem impostos.

Lá se foi Francisco. Obrigaram-no a separar-se de tudo que amava. Assim, desgostoso da vida urbana, contrariado em conseqüência da ingratidão causada pelas pessoas que serviu na sua juventude, pela saudade da sua terra e pela incompreensão por parte de quem mais amou, adoeceu.

A convivência na cidade não lhe fez bem, pois, apesar de ter recebido bom tratamento na residência do seu primogênito - como alimentação, remédios e outros cuidados necessários -, não esquecia o cheiro do mato onde viveu toda sua vida. Preferia passar fome... mil vezes a fome física do que a fome de amor que agora torturava sua alma. Ele sentia saudades dos animais, lembranças das vaquejadas alegres, dos banhos nos riachos... recordações das suas ovelhas, cabras e do galo cantador no poleiro chamando-o para ordenhar as vacas, bem como, lembranças dos bons momentos que tivera com Joana e das brincadeiras com os meninos. Em Teresina, apesar de toda atenção que recebeu dos seus entes queridos sentia no peito uma angústia destruidora que o corroía por dentro, ultrapassando todos os limites de tristeza que um ser humano poderia suportar. Francisco trocaria todo conforto recebido na cidade para retornar ao interior, mesmo vivendo outra vez as privações e o passado de miséria, desde que pudesse ficar novamente junto de tudo que mais amava.

À boca da noite, Francisco pegou uma cadeira de tampo de sola e sentou-se à calçada da Rua Treze de Maio, na Zona Sul de Teresina. O sol estava se pondo e esse é um dos momentos que mais enternece o sertanejo. Chico era um homem rude e acostumado ao semi-árido nordestino. Na verdade, essa foi a única região que conheceu durante toda sua vida. Por esse motivo não estranha o calor escaldante, o sol inclemente, o chão esturricado. O vaqueiro nordestino é um ser adaptado ao clima causticante – quando a sede aperta, bebe lama em forma de concha. A missão de homem campeador os treina de forma natural para as intempéries e para os perigos do cotidiano desértico. Mas, apesar de corajoso, o vaqueiro decepciona-se ao perceber que tudo que ganhou, comeu... e que a sua velhice será de penúria, lembranças e tristezas amargas.

Indignado com o desprezo de tanta gente com quem imaginou contar no fim da sua vida, Chico percebeu naquele momento o quanto era insignificante. Sentia-se impotente... a sua autoestima no chão. Chegou a imaginar jamais ter sido útil para quem quer que fosse. Muitos dos que criou, amou e serviu, o esqueceram. Olhos fitos no sol poente, Chico imaginou ter certeza que trabalhara para nada! Porém, Fernando chegou com uma cadeira e colocando ao lado da sua, falou:

- Papai, amanhã iremos à Barras do Marathaoan!...

Francisco que observava os últimos raios solares se dissiparem sobre os telhados das casas, passou as mãos enrugadas nos olhos marejados e esboçou um sorriso alegre para o filho. Iria rever muitas coisas bonitas novamente amanhã... Depois pensou consigo mesmo: “ainda vale a pena viver!”  

   (*)Constâncio Furtado Rêgo é autor de Estórias de minha gente