Uma pessoa muito especial
Por Bráulio Tavares Em: 16/07/2013, às 07H09
[Bráulio Tavares]
Um dos momentos mais intimistas e de maior empatia da 11a. Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) foi o recital de Fernando Pessoa feito pela cantora Maria Bethânia e pela professora Cleonice Berardinelli, “Dona Cléo”. Maria Bethânia foi uma das maiores divulgadoras da poesia de Pessoa em seus shows, a partir (creio) de Rosa dos Ventos, e depois em todos os outros em que trabalhou sob a direção de Fauzi Arap, a quem ela atribui tê-la “aplicado” com a poesia do português. Dona Cléo, aos 96 anos, considerada a maior especialista pessoana no Brasil, diz ter sido “inoculada” ainda aos vinte e poucos, por seu professor Thiers Martins Moreira, a quem dedicou um dos seus estudos sobre o poeta.
Respondendo a perguntas da platéia, entremeadas a provocações amistosas do mediador Júlio César Diniz, as duas recitaram poemas alternados dos heterônimos de Pessoa, e, às vezes, em estilo “mourão voltado”, cada uma dizendo uma linha. Poemas ditos em voz alta, principalmente por pessoas que os leem, releem e examinam há muitos anos, sempre trazem surpresas. Cada interpretação é pessoal. Certos versos parecem plácidos e tranquilos até que os ouvimos ditos com voz veemente, e percebemos que havia uma tempestade por baixo dele. Um tom interrogativo ou hesitante pode enriquecer uma frase aparentemente banal. Em geral, quando lemos, temos como único guia musical a pontuação gráfica, que serve como uma espécie de notação musical: indica pausas, força, pergunta, mudança de tom, etc. A leitura na voz alheia nos mostra que outras pontuações, além da escolhida pelo autor, podem ser aplicadas àquelas frases.
Pessoa foi único em sua multiplicidade assumida. Depois dele percebemos que muitos outros poetas poderiam ter usado heterônimos para explicar facetas diversas de si mesmo. O Augusto dos Anjos humano e afetivo de “Ricordanza della mia gioventù” e “A árvore da serra” não é necessariamente a mesma personalidade que concebeu as visões tenebrosas do “Poema Negro” e das “Tristezas de um quarto minguante”.
É surpreendente também constatar que o baú de Pessoa tem mais material que o de Raul Seixas. Desde a morte do poeta em 1935 não param de aparecer poemas inéditos, que Dona Cléo afirma serem às vezes quase ilegíveis, pela idade do papel e da tinta, além da própria caligrafia do autor. Requerem lupa, requerem fotos e ampliações, requerem longas discussões sobre palavras borradas ou obscuras. Como se cada palavra fosse ao mesmo tempo várias outras, e cada uma dessas escolhas nos desse a possibilidade de compor, por multiplicação combinatória, incontáveis poemas diferentes.