Cunha e Silva Filho


                                  O poema, “Mon habit,” transcrito abaixo, na minha tradução bilíngüe, de Alphonse de Lamartine, poeta romântico francês, do qual já traduzi um outro poema nesta Coluna (vide Letra Viva, Um poema de Lamartine, "Lautonne" ) fala da bela relação entre um personagem e uma velha casaca, atribuindo a esta peça do vestuário um sentimento de um forte elo de amizade entre ela e ele, animizando-a, portanto, num diálogo entre os dois, no qual o sujeito lírico” se dirige a um “tu, , a peça de vestimenta. Sujeito e objeto se unem e dessa união nasce entre o homem e o ser inanimado uma história que não deseja ter fim. Em meio à amizade que cresce entre ambos há que se ter em conta o componente misto de ironia e comicidade, já que o objeto, a casaca, assume um papel de importância na vida do personagem do poema como se fora um ser de alma partilhando uma amizade duradoura numa aventura de cumplicidade: “Junto envelhecemos”(2º verso). Além disso, o objeto de indumentária se associa ao sujeito do poema num grau tal de convivência que a idéia de separação se afigura impensável da parte do dono da casa,  num refrão ( 8º verso) que se repete ao final do poema. 
                                A alusão ao filósofo grego Sócrates (469-399 a. C.) não é gratuita na composição do poema. Quando o personagem declara que a casaca com ele está  desde os dez anos e é por ele cuidada, pois é o próprio dono quem faz a escovação dela , recordo que o filósofo grego foi uma figura corajosa, persistente no seus atos e nas suas ideias e princípios éticos dos quais não abriu mão até o final de sua condenação. Ou seja, Sócrates morreu inseparável de sua visão do mundo e do homem, dos seus princípios estribados na liberdade do pensamento, na justiça e na lei, insubordinado à prepotência dos poderosos da Grécia de Péricles. No 5,º 6º e 7º versos, o personagem, ao aludir à possibilidade de que o destino ainda lhe reserve mais “combate”, conclama a casaca que o imite, que resista “filosoficamente”. Essa interpelação me pode levar ainda ao filósofo grego cuja coragem e determinação para não sucumbir à vontade dos adversários, resiste até ao fim e morre com dignidade, dando mais uma lição de vida e de retidão não se dobrando à injustiça de sua pena. 
                                 Ao citar o filósofo grego, o personagem do poema a um tempo que traz para a cena da história, narrando poeticamente a relação de humanidade , de amizade e de perenidade entre dois seres de espécies diferentes, reforça um dos sentidos de natureza filosófica do poema, segundo o qual não importa a condição de idade, de aparência decadente conotada pelo lexema “indigência” das coisas e, por extensão, dos homens, que passamos a amar e que já fazem parte de nossa vida. A velha casaca para o dono ainda é motivo de “orgulho”. Dela não quer por força se apartar. A casaca passa, enfim, a ser símbolo de resistência de valores que não podem ser suprimidos com o tempo. Daí a insistência do refrão: “nada de adeuses, velho amigo meu.”
                              Após esse breve comentário, convido-o, leitor, à leitura do poema:


Mon habit

Sois-moi fidèle, ô pauvre habit que j’aime!
Ensemble nous devenons vieux
Depuis dix ans, je te brosse moi-même
Et Socrate n’eut pas fait mieux.
Quand le sort à ta mince étoffe
Livrerait de nouveaux combats,
Imite-moi, résiste en philosophe:
Mon viel ai, ne nous séparons pas.

Je me souviens, car j’ai bonne mémoire
Du premier jour où te mis,
C’était ma fête, et, pour comble de gloire,
Tu fus chanté par mes amis.
Ton indigence que m’honore
Ne m’a point banni de leurs bras,
Tous ils sont prêts à nous fêter encore:
Mon viel ami, ne nous séparons pas.(Chansons)


Minha casaca

Ò pobre casaca amada, sede-me fiel!
Juntos envelhecemos.
 Desde os dez anos  te escovo.
Melhor não o faria Sócrates.
Quando, no teu leve tecido,
Pelo destino travasse mais combates,
Imita-me, resiste filosoficamente:
Nada de adeuses, minha velha amiga.

Bem me lembro, pois memória boa tenho,
Do primeiro dia em que te enverguei.
Era meu aniversário e, por cúmulo da glória,
Elogiado foras por amigos meus.
Tua indigência, de que me orgulho,
Não me afastou do convívio deles.
Prontos estão todos a novamente me festejar:
Nada de adeuses, minha velha amiga.