Um morto ilustre não pode se defender
Em: 01/11/2010, às 09H43
Cunha e Silva Filho
Não se pode falar de Monteiro Lobato (1882—1921) sem associá-lo à literatura infantil. Isso é já é muita coisa e o suficiente para reconhecê-lo como figura de proa das letras brasileiras. Seu personagem Jeca Tatu foi logo objeto da atenção do grande jurista Rui Barbosa(1849-1923) que nele via um símbolo negativo dos males da nação brasileira: o do homem caipira, abandonado e maltratado pelos poderes públicos, cheio de verminose, vivendo de cócoras, descalço, preguiçoso por conta dos próprios vermes que lhe roíam por dentro.
Essa figura ganhou popularidade pelo país afora, porém uma popularidade que se prestava também para debates políticos, antropológicos sociológicas da constituição do nosso povo no que concerne ao problema da raça e de seus elementos formadores num país que longe estava de identificar e corrigir seus defeitos e suas exclusões, quer dizer, Euclides da Cunha (1866-1909), Lima Barreto(1881-1922), Monteiro Lobato e Graça Aranha (1868-1931), na fase literária a que se convencionou chamar Pré-Modernismo, contribuíram, cada qual à sua maneira, com uma ponderável visão social para melhor aprofundar, pelo viés ficcional, aspectos da realidade brasileira que estavam a exigir mudanças de interpretação isentas de ufanismos e de nacionalismos míopes que só serviam para escamotear as velhas chagas sociais, políticas e culturais que, no mínimo, vinham da República Velha.
A vertente social desse período da literatura brasileira é um divisor de águas de estilos literários e de temas relevantes quando a confrontamos com o Parnasianismo e o Simbolismos, movimentos estes por excelência absenteísta nos temas e requintadamente formal na língua.
A primeira vez que tomei contato com a ficção lobatiana foi através do conhecido livro de contos, Urupês (1918), que pertencia à biblioteca de meu pai. Na época, não li o livro. Deixaria pra depois, porém um conto dele, “Negrinha”, o primeiro de um livro de título homônimo, li num manual didático já quando professor do ensino hoje chamado fundamental e médio. Fantástico o conto, e fantástico justamente porque toca num tema polêmico e ainda atual: a personagem central do primeiro conto, ”Negrinha,” que dá nome ao título da obra, é a vítima dos maus tratos da patroa. Nem é preciso dizer por que motivos a patroa a trata assim. Pois bem, essa história põe o dedo na ferida, a do preconceito não só em razão de Negrinha ser pobre, mas também por ser preta.
Numa reportagem de ontem, dia 30 de outubro, no jornal O Globo, leio, estarrecido, uma notícia de um parecer aprovado pelos membros do Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão subordinado ao MEC. Segundo esse parecer, a personagem de Lobato, a tia Nastácia, tão conhecida por gerações de brasileiros que se tornaram, desde crianças, fiéis leitores do criador de tantas figuras estimadas por crianças (e adultos), é, agora, vista como um exemplo de construção literária vítima do preconceito racial da perspectiva do “autor.” Ou seja, os membros do CNE, ab initio, cometeram um erro imperdoável, o de confundir autor de carne e osso, no caso, Monteiro Lobato, e narrador, que representa apenas a configuração imaginária que deve ser compreendida do ângulo da narratividade e não a partir da realidade empírica ou referencial.
No mesmo erro incidiu a Secretaria do de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), que, numa “nota técnica” emitiu opinião contrária ao livro Caçadas de Pedrinho,” argumentando que ele só deveria ser utilizado caso o professor esteja preparado(!?)) para fazer a necessária contextualização histórica das causas que provocaram o abominável regime escravagista no país e suas sequelas futuras, as quais resultaram na estigmatização racista ainda de alguma forma resistente entre nós.
Vejo esse incidente lamentável como um sinal perigoso, ou melhor, obscurantista, para que novos casos semelhantes possam ocorrer com os autores brasileiros. Me lembro de que, certa vez, o escritor Darcy Ribeiro foi também vitima de leitura deformada, que via, na fala de um personagem de uma de suas obras ficcionais, conceitos inadequados do ponto de vista “moral”.
Situações como estas devem receber o repúdio dos que prezam a livre expressão do pensamento, sobretudo em se tratando de obra ficcional. Não estamos mais na Idade Média, nem vivemos num país fascista ou numa ditadura comunista, onde se costumava levar livros às fogueiras, apreendê-los ou punir os autores com prisões ou deportações para os Gulags da vida. O Santo Ofício é coisa para ser sepultada de forma definitiva. O Index librorum prohibitorum, que me perdoe o Vaticano, não foi bom exemplo para países que respeitam os direitos de expressão oral e escrita. Acredito até que os Nihil obstat nem mais aparecem nas páginas do verso de livros didáticos dos maristas. Ainda bem.
Por conseguinte, o Parecer do CNE, que deverá ser ou não homologado pelo Ministro da Educação, após a análise da Secretaria de Educação Básica, não pode ser deferido pelo Ministro, porque isso seria um retrocesso para a democracia que se afirma estar vivendo o Brasil.
O livro de Lobato, afirma a reportagem, já tinha sido distribuído a escola públicas do ensino fundamental através do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), entre 1998 e 2003. Cumpre lembrar, segundo a citada reportagem, que a liberação desses livros só se efetuou após seleção aprovada por especialistas recomendados pelo MEC. Como explicar essa mudança agora? Em questões que dizem respeito a seleção de obras para os alunos, cabe aos professores habilitados na área de literatura o encargo de cuidarem de assuntos dessa natureza.
Não é porque algum estudante, mesmo de mestrado, com deficiência flagrante dos pressupostos práticos e teóricos de leitura e de conhecimentos sólidos de literatura, venha a fazer leitura unilateral e, aí si, preconceituosa de um autor, que seja levado em conta por órgãos da administração pública na área da educação, e provoque dissonâncias prejudiciais à memória de um dos escritores mais respeitados da história da literatura brasileira, autor querido do público infantil, aplaudido, certa vez, em Buenos Aires por seus méritos de autor para a infância. E não estamos ainda falando do seu papel em defesa do petróleo brasileiro, do ferro, da sua atividade de editor de à frente da Companhia A Editora Nacional. E de outras expeirências editoriais, como a Revista do Brasil,
Se observarmos atentamente a condição da escola pública brasileira, quantas mazelas, quantas metas devem ser atingidas para que saia de um situação praticamente crônica que a tornou, aos olhos da sociedade, motivo de piada, de descrédito, tanto em relação à estrutura das escolas em si, a salientar sobretudo a baixa qualidade de ensino e de condições de trabalho, quanto no que tange aos vis salários ainda pagos aos professores brasileiros.Por que o MEC não se volta, isso sim, para esses graves problemas enfrentados pela educação do país?
Se o fizesse, não haveria tempo e ócios bem remunerados por técnicos e coordenadores de universidades públicas e de órgãos do MEC para, em leituras apressadas e mal assimiladas, encontrar interpretações literais para textos que exigem um aparato mais complexo além das referencialidades extra-contextuais.
É preciso atentar para o fato que não é apenas a aprovação de uma lei contra o racismo entre nós que vai mudar o interior das pessoas. O buraco está mais embaixo, quer dizer, está simplesmente no preparo cívico-moral de nossas crianças, desde a mais tenra a idade, para saber conviver com as diferenças de cor sem que isso implique inferioridade uma ou outra. Instilar a prática da convivência harmônica entre etnias me parece a melhor forma de se cumprir uma lei. O estigma do preconceito deve ser extirpado em definitivo do nosso mundo interior, de nossa ética de cidadania e respeito às alteridades.