Cunha e Silva Filho

Caro Elmar


Seu blog, O Poeta Elmar Carvalho” está caprichado. Nos move à leitura.
Li o pequeno texto “Álcool e Sangue”. À primeira vista, sapequei-lhe uma classificação: é um mini-conto. Explico as razões. O texto possui aqueles elementos básicos de uma narrativa: personagens, espaço, uma mini-trama, tema, além de narração e descrição.
O tema, se quisermos assim defini-lo, seria o da insensatez humana, aqui tipificada no vicio e nos seus males decorrentes. O motivo da desavença através do qual o narrador faz avançar sua história, é fútil: a reclamação da mulher pelo excesso de bebida alcoólica do marido. Apenas um gesto de prudência da mulher. O que para ela era cuidados com o marido, torna-se para este um ato de injúria e de indevida intromissão. Daí, a fúria dele injustificável e covarde. Não fora o irmão dele mais forte e quase um gigante, certamente teria havido uma tragédia em família.
Os personagens não apresentam nomes. Inclusive, o personagem-visita também não tem nome explícito.
O tempo da narrativa somente se indicia através da expressão “No momento”. Nada mais. Por conseguinte, a rigor, só existe o tempo do enunciado, que é, na cena descrita, de duração restrita, matematicamente indefinido.
O narrador se põe de fora como se visse tudo por uma câmera de filmagem, narrador heterodiegético, segundo a classificação narratológica de G. Genette. Na realidade, rigorosamente,só há o tempo da escrita, que comporta um único parágrafo no qual a cena transcorre.
Há outros aspectos dignos de observação e análise: o da linguagem e um outro associado à verossimilhança ficcional.
A linguagem é concisa, com sabor clássico. Haja vista, o emprego do infinito preposicionado, muito frequente na sintaxe lusa, e equivalente ao gerúndio no português do Brasil.
Quanto à verossimilhança, cumpre atentar para alguns detalhes da estrutura interna da micro-história. Vejamos: o “coquetel” preparado pelo marido da infeliz esposa leva ingredientes marinhos misturados com “aguardente”. Ora, aguardente ´é pertinente a um coquetel, mas os demais “ingredientes, não: “búzios”, “ostras”, “hipocampo’, “estrelas do mar". Essa mistura instaura uma atmosfera surreal, não-pertinente ao conceito corrente de um coquetel caseiro.
A minúscula narrativa se desloca, assim, da normalidade da ordem natural das coisas e assume essa dimensão de estranhamento, quer dizer, de provocar a sensibilidade do leitor, de desviá-lo de hábitos de leituras automáticas e superficiais. Esse fenômeno faz parte da construção poética da modernidade. A propósito, o próprio narrador menciona o vocábulo “estranho” ao referir ao coquetel utilizando-se de um oxímoro no sintagma “estranho e belo coquetel". Antes, já havia se utilizado de uma comparação, lembrando que o copo de coquetel semelhava um “aquário”, ou seja, este termo intensifica o campo semântico em torno do coquetel. Estamos em plena alusão ao espaço marinho, ao espaço das coisas líquidas no mini-texto, entrelaçadas e acrescidas de um outro componente líquido: o sangue. Este é da ordem dos seres animados, do homem, da vida.
Álcool e sangue metaforizam o sentido geral do micro-texto: aquele como índice que aponta para a possibilidade de uma tragédia, o segundo a um tempo que prefigura a vida, também serve como indicador da possibilidade de morte. No mini-texto, da morte pela arma branca.
Há que levar em conta ainda um outro fator de reforço estético-semântico deste curtíssimo texto, algumas expressões de natureza hiperbólica que reiteram o exagero da pintura da cena, dos traços dos personagens, os dois irmãos, simbolizando ambos o poder da força, da brutalidade que, no marido, age para o mal e o trágico-cômico e, no irmão que salva a cunhada, age para a prática do bem.
O cenário do mini-conto tem inegáveis características naturalistas. O texto, porém, se vivifica com o sopro da modernidade na medida em que se contamina de referências surreais.

(TEXTO EXTRAÍDO DO INTRÓITO DO BLOG DO ESCRITOR  ELMAR CARVALHO)

Poeta Elmar Carvalho29 de jan