Mora sozinho num quarto em meio a um terreno baldio. A sombra de um pé de tamarindo serve-lhe de cozinha e lavatório de roupas. Um banheiro e uma sentina feitos de estacas de marmeleiro e folhas-de-flandres completam o conjunto residencial. Do tamarineiro, dá para sentir o cheiro de estrume do curral ao lado.
      Acredita em alma do outro mundo. Os malandros se divertem pregando-lhe peças, armando-lhe falsas arapucas. É uma noite escura de silêncio e ele anda tranqüilo assoviando um bolero na rua deserta. De repente, um galope de cavalo, um canto de galo, um silvo de cobra. O pavor. Ele dispara na carreira, e as gargalhadas dos malandros o seguem rua abaixo. Não pára de correr; supõe que sejam risadas de espíritos malignos vagando na noite tenebrosa.

      De ingênuo, torna-se enjoado quando bebe umas canas. Tenta fazer confusão com quem topa pela frente. É só farofa. Ninguém tem medo dele e ninguém crê que ele vá brigar. Nessas horas, vira fanfarrão: já quebrou mesa de bar, já brigou contra um monte de soldados, já derrubou umas quinhentas mulheres nas palhas macias detrás da usina de descaroçar arroz. Fala ao léu, enganando-se a si mesmo, e se envaidece com as fantasias da embriaguez. Mas, em noite de sexta-feira treze, não sai do quarto com medo de lobisomem!

      Ele se abraça ao pé de tamarindo e aspira feliz o olor de estrume que vem do outro lado do quintal. Está a sonhar, a ter esperança, a ter uma saudade antecipada do seu pequenino mundo encantado. Seu pensamento viaja distante para as bandas de São Paulo: quem sabe, lá não seja a solução de minha vida? Não sou como meus amigos, que vivem apenas por um prato de comida. Quero um relógio, uma roupa colorida, um sapato de camurça, uma dentadura bonita. Talvez uma moça rica.

      Prepara a viagem. Nada o demove do intento de mudar a sua sina. Mês após mês, trabalha duro e junta dinheiro para comprar a passagem. Adeus inocência, adeus fome de sempre, adeus amigos tarefeiros, adeus carregadores, cachaceiros e vadios. Só não dá adeus à família, porque essa nunca teve; desde menino já se viu assim no mundo, sozinho, sem ninguém.
      Parte para São Paulo como muitos, deixando a alma entranhada no cabo da enxada, na porteira do curral... Ele deixa a alma nas ruazinhas sossegadas, nos sacos que tem de carregar, no cheiro do estrume, no tamarineiro que lhe sombreia o refeitório...  

      Gotas de lágrima rolam de seus olhos quando o ônibus arranca numa clara manhã de setembro. São lágrimas de saudade e de esperança. O seu plano é passar umas temporadas no Sul, ganhar uma boa grana – e depois voltar. 

      Ele não volta. Não se sabe notícias dele. Nem seus amigos lembram de que um dia ele existiu: para eles, o que importa é o prato de comida, pelo qual têm de batalhar todo dia.