A ficção fantástica brasileira do século XIX

A  LUNETA  MÁGICA, resenha




                                                           Miguel  Carqueija


Autor: JOAQUIM MANUEL DE MACEDO. Editora Ática (S. Paulo), Série Bom Livro, Quarta edição, 1977. Romance publicado originalmente em 1969.



     Fruto da pena de um dos mais célebres romancistas brasileiros, “A luneta mágica” é uma história densa, fechada sobre si mesma, num esquema completo. Com uma tessitura filosófica que a perpassa do princípio ao fim, a novela é fantástica, metafórica, poética, lembrando um pouco a ficção científica quando a magia se configura em instrumentos de precisão: as lunetas utilizadas por Simplício.
     A trama só poderia ocorrer com alguém como Simplício: um rapaz absurdamente míope, e mais absurdamente ainda crédulo, que narra detalhadamente as suas desventuras. Aprendiz de feiticeiro, ao desencadear forças que não saberá controlar, Simplício passa a enxergar normalmente ao receber de um misterioso armênio – cujo nome não é mencionado uma única vez – a luneta mágica, onde foi aprisionada uma salamandra (não o anfíbio, mas uma criatura de fábula). O mágico adverte o rapaz:
     “Além do número de três minutos está a visão do mal, que o meu poder de mágico não te pode impedir; porque a visão do mal é a vingança da salamandra escrava; mas a fixidade dessa luneta além do número de treze minutos é a visão do futuro, e essa eu ta impeço.” E acrescenta que a luneta se quebrará nas mãos de Simplício, se ele tentar a experiência.
     Simplício, claro, se deixa levar pela mórbida curiosidade de conhecer a terrível VISÃO DO MAL, e fixa a luneta (monóculo) por mais de três minutos. Resultado: tudo, mas tudo mesmo, se lhe afigura perverso, maléfico, traiçoeiro. Detalhista, o autor entra em minúcias curiosíssimas, espalhadas por uma infinidade de capítulos curtos. Vejam algumas amostras:
     “O beija-flor é como a serpente pela extensibilidade da língua, e esta ainda nele se duplica, estendendo dois filetes, que lhe servem como as garras às aves de rapina. Finalmente assassino e destruidor, ele mata e devora em cada dia dezenas e dezenas de insetos inocentes, fracos e incapazes de defender-se, ousando sem continência, nem respeito ir arrancá-los do mais doce asilo, do seio mimoso das flores!...”
     Após essa diatribe contra o colibri, que a visão do mal lhe revela ser um ente malvado e sádico, Simplício prossegue em suas decepções com a Natureza: “Vi uma pulga. A perversa estava cheia de sangue, talvez meu, com que se havia regalado (...) Inimiga declarada do homem e da senhora, ousa devassar o leito da honestidade e do recato, morder sem piedade a menina, a donzela, a esposa, a matrona (...) Vi o mosquito: outro monstro sanguinário dez vezes mais bárbaro que a pulga; porque a pulga farta-se do sangue em silêncio, e não zomba das vítimas, e o mosquito, à semelhança dos selvagens e dos bárbaros que dançavam festivos em roda dos cadáveres de suas vítimas, o mosquito, digo, bebe sangue ao som da musica, ou antes e depois de bebê-lo em nossos corpos, canta enfadonho, insuportável, desatinador, insistente como o grilo.”   
     E assim por diante: o cupim é “implacável”, um “inseto-monstro”, a aranha é “assassina, terrível”. Se simples animais irracionais, inocentes, causaram tanto horror desvendados à “visão do mal”, imaginem o que Simplício não vê nas pessoas! Para início de conversa perde a confiança nos parentes com quem mora: o irmão Américo, a tia Domingas e a prima Anica. Todos eles se transformam, a seus olhos, sanguessugas exploradoras.
     A visão do mal arrasta Simplício ao ceticismo, ao desespero, ao ponto de admitir: “Achei-me na terra sem um parente amado, sem um parente possível, sem uma noiva possível, sem sociedade possível...” O curioso é que quando Simplício troca de luneta e passa a ver o bem em todos e em tudo, sua situação não melhora. De certa forma até piora porque, confiando em todos, acaba vítima dos mais descarados vigaristas, emprestando dinheiro e assinando documentos, até colocar a família em pânico e ser ameaçado de interdição.
     É incrível a credulidade do Simplício: com a visão do bem eis o que ele vê, quando visita a penitenciária: “Será incrível, mas é verdade: não há um só daqueles infelizes condenados que não seja inocente dos crimes que lhes imputam.”
     Essa credulidade pode até ser irritante para o leitor: será Simplício um completo imbecil? Será possível que ele não questione nem por um momento o que lhe mostram as lentes mágicas? Aliás em nenhum lugar do livro se explica como funciona a visão mágica, de que maneira o personagem percebe as qualidades morais que descreve. Isso deve ter sido embaraçoso para Macedo, e ele preferiu contornar a questão (ou não teve outro jeito). Simplício admite a sua miopia moral; mas na verdade se ele não fosse assim o livro não poderia ser escrito. J. M. Macedo levou o assunto à exacerbação, com o protagonista à beira da loucura sob o efeito da luneta, e só assim a mensagem pôde ser passada com todo o seu vigor. Assim, se a luneta mostra o mal, Simplício crê no mal; se mostra o bem, ele crê no bem.
     Será maniqueísta a visão do livro? Não; é o anti-maniqueísmo. Nesse mundo, e principalmente noas seres humanos, as coisas boas e más estão misturadas. Por isso não se espera que as pessoas sejam inteiramente boas ou más. Por não compreender isso Simplício caminha para a autodestruição, que só o armênio sem nome, o único que controla os acontecimentos, irá impedir na hora certa.
     Há uma riqueza filosófica nessa novela cuja posição é singular na ficção brasileira; riqueza essa disfarçada, de certo modo, pela ingenuidade do estilo, estribado na ingenuidade do personagem central. É livro cuja leitura eu recomendo.
     A edição que utilizei possui um anexo para exercício escolar em torno da história, e um comentário de Marisa Philbert Lajolo.