Ramayana de Chevalier (1909-1972)

Ramayana de Chevalier (1909-1972)


ALEGRIA

Manaus, Jornal do Commercio, em 25 set. 1958

Reproduz:

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Quando Frederico Nietzsche, do fundo de sua caverna lôbrega, afirmava que Jesus só pregava o amor ao próximo, porque não conhecia a democracia, estava em transe de iluminação. A democracia é irmã gêmea da demagogia e esta, filha dileta do diabo.

O político profissional tudo promete, certo de que irá se manter com um milésimo do prometido. Sorri, como as figuras torvas do submundo parisiense: de esgar. Aperta mãos com a solicitude dos carteiros. Tira o chapéu quando o usa, como um mágico do palco, para que surja dele uma surpresa. E, nos comícios, alteia a voz com ênfase, numa coleção abjeta de lugares comuns que todas as bocas mentirosas já repetiram; inflama os olhos; suspende o dedo em riste como se agitasse um látego; submete-se a uma falsa atitude humilde, como se fora um servente obscuro da grande massa eleitoral.

Quando ele defende uma tese social, quando está do lado do povo, aconselhando-o, pregando, doutrinando, então é feliz. Pode ser sincero. O seu entusiasmo é contagiante, é quase puro, é vivo e ardente. Sem o povo, ele falseia e mente, intriga e infama, apedreja e gargalha, cospe nas tradições e rasga os cânones mais nobres da espécie.

O político profissional é uma pobre criatura que tem que se defender do seu maior inimigo: o eleitor inconsciente. Este é o verdugo e a vítima. Sente-se enorme às vésperas do pleito, como sabe que é um verme, no resto do tempo. E quando não possui a consciência cívica, gloriosa e alta, que lhe empresta o poder seletivo, o condão de escolher, então rasteja e sacode-se como um chacal. Pretende escravizar moralmente o político, como este o maneja socialmente. O eleitor inconsciente só vê uma coisa às vésperas do pleito: o seu interesse. Insinua, difama, toma dinheiro, ou empavona-se em chefete, procura dirigir o candidato, absorver-lhe a atenção, empolgar-lhe a atividade, arrastá-lo para si como um joguete sem vontade e sem critério. E engendra despesas imaginárias como um Einstein, inventa contas como um botequineiro.

Disse-me o meu amigo Ruy Araujo, brilhante candidato a deputado federal, que, se fossem verdadeiros os livros de fichas eleitorais que apresentam esses forjadores de fantasmas, o eleitorado amazonense seria maior que o de São Paulo. Se o político profissional é algo de sórdido, o eleitor profissional é muito mais sujo. E chato.

No fundo, ele vota num interesse, não vota num homem. E alicia a opinião do povo humilde, com a esperteza de uma víbora. Tenho alergias por estes sacripantas. O seu contato me é nefasto. Creio no povo, modesto e bom, que enche este mundo.

Se os peitos eleitorais se passassem com elevação, sem arreganhos, sem cachaça e sem demagogia, então valia a pena tentar-se a defesa de uma tese social, de uma doutrina política sadia.

Quando vejo um desses eleitores profissionais aproximando-se de mim, arrogante ou de sorriso número cinco a tiracolo, tenho vontade de mandá-lo para o lugar aonde Pilatos mandou o inventor do sabonete.

Tenho uma invencível vontade de trabalhar pela minha gente, de dar de mim pelos humildes do nosso Estado. Mas o processo me constrange. Gostaria que tudo se passasse entre pessoas conscientes, entre almas compreensíveis, entre vocações patrióticas definitivas. Se, para ser político, é preciso abdicar de tudo isso, então já não contem comigo. Sou alérgico ao cinismo.