Perfume de resedá

Paulo José Cunha
Jornalista/Escritor


Quando conceder o primeiro autógrafo em "Perfume de resedá", na noite desta quarta-feira, estarei entregando ao público um projeto que parece ter demorado 25 anos para ser finalizado, já que seus primeiros versos foram es-critos numa antiga Remington, em 1984, quando nem se imaginava que os computadores iriam dominar o mundo.

Na verdade, o poema único guardado no livro de 120 páginas que será lançado no ÊPA - Espaço Eventos (Centro Empresarial Francisco Mendes, Anfrísio Lobão, 1.200, perto do antigo Posto 6, no Jockey), começou a ser es-crito 58 anos atrás, quando eu nasci. "Perfume de resedá" tem precisamente a minha idade.

Quando comecei a escrevê-lo não sabia onde iria chegar. Durante os 25 anos em que fui pondo essas memórias no papel em forma de poema, produzi dois livros de arte sobre a festa dos bumbás de Parintins - "Vermelho, um Pessoal Garantido" e "Caprichoso, a Terra é Azul"; lancei as quatro edições da "Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês"; produzi mais de 30 documentários, alguns premiados nacionalmente; virei professor da UnB; saí da Rede Globo, onde era repórter político, e virei empresário; fiz concurso e me tornei apresentador da TV Câmara.

Saí de um casamento e entrei noutro (que também já acabou). Miguel de Unamuno dizia que a infância é o período mais importante da vida de um homem. Tinha razão.

Um memorial como "Perfume de resedá" tem seu início, na verdade, a partir do dia em que seu autor abre os olhos para o mundo. Antes até: começa pela recuperação da lembranças ouvidas, lidas ou imaginadas.

E muitas dessas lembranças atravessam as décadas, os séculos, embrenham-se no tempo, às vezes vão até a pré-história, lá no Devoniano, quando o mar ainda cobria as terras onde hoje pastam os bois e demoram siriemas e jacus, no sertão do Piauí.

Dessa matéria foram tecidos os versos que compõem este poema-memória, que vem sendo bem recebido, a ponto de alguns leitores o classificarem exageradamente de "épico definitivo da saga da Chapada do Corisco" (Edmar Oliveira); ou de "épico da vida miúda" (Salgado Maranhão).

Bondade desses leitores, todos meus amigos. "Perfume de resedá" não pode ser definitivo porque no futuro certamente haverá quem também gastará um quarto de século para contar memórias em versos. Também não é um épico "da vida miúda" porque, para qualquer menino, um jogo de petecas ou as peripécias pelo breu dos sertões durante as férias não têm nada de miúdos: tudo é enorme.

E tão ou mais importante do que a Inconfidência Mineira ou a Criação do Mundo. Nos tempos da infância - procure se lembrar aí, revire suas lembranças, há de se recordar - os acontecimentos mais prosaicos são tão trágicos, dramáticos ou curiosos, que marcam definitivamente quem os viveu. Marcam com marcas mais fortes que o meteoro que extinguiu os dinossauros. São marcas eternas, porque não são de ouvir falar: são marcas vividas.

Somos feitos de infância. E não se vá dizer que ao aceitar isso tenhamos sido afetados por uma onda de nostalgia ou sucumbido a um surto de pieguice saudosista. Unamuno tinha razão. É na infância onde tudo começa e termina.

Quem assistiu a "Cidadão Kane", a obra-prima de Orson Welles, nunca vai se esquecer da famosa cena em que o magnata das comunicações, à beira da morte, repete uma palavra enigmática: "Rosebud, Rosebud...".

O filme segue em flashback e chega a seu final com a revelação do enigma: "Rosebud" era apenas a marca do primeiro brinquedo de sua vida, uma patinete... Infância, sempre a infância.

Rosebud. Resedá. Memórias terminam envolvendo a imaginação, e as mentiras ou sonhos de infância passam a ter importância fundamental na formação do homem do futuro. Entranham-se de tal forma no imaginário que, por força da permanência, mentiras assumidas e indefensáveis convertem-se em verdades absolutas.

Essa mistura de imaginação & realidade, amalgamada na infância, é o substrato de obras definitivas do cinema, como Amarcord, de Federico Fellini, o mais genial mentiroso de nosso tempo.

No que diz respeito às minhas mentiras, como não acreditar que um olho d'água secará se a árvore centenária que vive ao lado dele morrer, como me contavam os caboclos da fazenda? E que Manoel, o filho de seu Zeca da Bodega, da Rua São João, tinha a melhor pontaria do jogo de petecas ou no tiro de baladeira por ter comido coração de beija-flor? Não sei você, mas EU acredito nessas coisas.

Pois eis a matéria-prima de que me vali para a elaboração desse poema sentimental e memorial. Tudo que não é verdade nele é mentira. E tudo o que não é mentira eu inventei. Logo, é verdade.

Os mais velhos, ao passear por suas páginas, hão de reencontrar pedaços de suas próprias memórias, de sua história. E os mais jovens vão saber como já foi ingênua a capital criada pelo Conselheiro, no tempo em que os meninos tinham asas e sobrevoavam os quintais.

"Perfume de resedá" tenta ser um despretensioso convite a esse reencontro proustiano com o menino que insiste em morar eternamente dentro de cada um de nós. Apareça, reencontre-se. E abra bem as suas asas, porque nós vamos voar.