O jogo
                               Lêdo Ivo
No dia perdido, no dia estilhaçado,
tudo é dividido ou multiplicado.
 
O eu e eu duplo atravessam a praça
colados numa efígie de moeda ou selo.
 
O uno vira triplo no alto da escada
e se derrete ao sol como uma pedra de gelo.
 
O singular é plural. O vento varre
o tombadilho do navio ancorado
 
e um fanal de espuma aponta o momento
da última pá de cal. Então o todo e a parte
 
se fundem afinal em ninguém e em nada.
 
           Descoberta do inefável

           A Lêda
                                        
Lêdo Ivo
           Sem o sublime, que é o poeta? Sem o inefável,
           como pode louvar, não traindo a si mesmo,
           a plena e estranha juventude da moça a quem ama?
           Que é o poeta, que imita as marés,
           sem adquirir com o tempo uma serenidade de coisa sempre nua
           como se as estrelas estivessem caminhando governadas
           pelo seu riso
           e seus braços agitassem as árvores feridas pelo clarão da lua?

           Sem que seu canto suba até os céus, sufocante música da terra,
           que é o poeta?
           Libertado estou quando canto. E quero
           que minha respiração oriente a vontade das nuvens
           e meu pensamento de amor se misture ao horizonte.
           Cantando, quero outubro, gosto de lágrima, salsugem,
           no instante anterior ao despertar, folha voando.

           Sem o inefável, que dura sempre, sem permanecer,
           como conseguirei louvar essa moça a quem amo
           e que nasce em minha lembrança plena como a noite
           e triunfante como uma rosa que durasse eternamente
           e não se limitasse à glória de um dia?
           Sem o inefável, que valoriza as mãos e faz o Amor voar,
           não poderei descer de repente
           ao inferno de seu corpo nu.

           O sobrenatural ainda existe. E não seremos nós
           que alteraremos a indizível ordem das coisas
           com as nossas mãos que poderão ficar imóveis
           em pleno amor, diante do corpo amado.

           É inútil pensar que os anjos morreram
           ou se despaisaram, buscando outros lugares.
           Eles ainda estão, unidade admirável do Dia e da Noite,
           entre as nuvens e as casas em que moramos.

           Repentinamente, as vozes da infância nos chamam para a feérica viagem
           e lembram que podemos fugir para o longe guardado ainda
           no sempre.
           Então, nossas necessidades não se reduzem apenas a comer,
           dormir e amar.
           Temos necessidade de anjos, para ser homens.
           Temos necessidade de anjos, para ser poetas.

            Vem, incontável música, e anuncia
           (ao poeta e ao homem, humilde unidade)
           a ressurreição diária dos anjos.
           Restaura em mim a certeza de que a folha voando é seu indomável divertimento
           pois às vezes sinto que meu primeiro verso foi murmurado talvez
           sem que eu soubesse, por um anjo
           perturbado com o meu ar desesperado de papel em branco.

           Não é a manhã, depositando a semente de alegria no coração
           dos homens.
           Não é a vida, cântico triunfal descendo sobre as almas.
           Não é o poeta, subindo pelos andaimes de carne da lembrança
           de uma mulher.

           São os anjos, que vieram ligar-nos mais uma vez
           à ordem eterna e, à anunciação.
           Não nos libertaremos jamais desses anjos
           feitos de terra e mar, celestes criaturas
           que deixam cair em nós o sol da harmonia.

           É inútil matar os anjos.
           Eles são invisíveis e traiçoeiros.
           De repente, quando nos sentimos seguros, já não somos
           os consumidores de instantes, e estamos
           entre o Dia e a Noite, no umbral
           de uma eternidade vigiada pelos anjos.
           Soneto dos Vinte Anos
                                            Lêdo Ivo
          Que o tempo passe, vendo-me ficar
          no lugar em que estou, sentindo a vida
          nascer em mim, sempre desconhecida
          de mim, que a procurei sem a encontrar.

          Passem rios, estrelas, que o passar
          é ficar sempre, mesmo se é esquecida
          a dor de ao vento vê-los na descida
          para a morte sem fim que os quer tragar.

          Que eu mesmo, sendo humano, também passe
          mas que não morra nunca este momento
          em que eu me fiz de amor e de ventura.

          Fez-me a vida talvez para que amasse
          e eu a fiz, entre o sonho e o pensamento,
          trazendo a aurora para a noite escura.
Firmamento
                          Lêdo Ivo
No dia cheio de estrelas
como a noite aguardo o vinto
que vai espalhar a minha alma
no firmamento.
 
Na noite da ventania
a morte será um frêmito,
o luzir de uma luz negra
no firmamento.
 
E tudo será silêncio
e será esquecimento
na eternidade da noite
e do vento.
 
           Acontecimento do Soneto
                                 Lêdo Ivo
           A doce sombra dos cancioneiros
           em plena juventude encontro abrigo.
           Estou farto do tempo, e não consigo
           cantar solenemente os derradeiros.

           versos de minha vida, que os primeiros
           foram cantados já, mas sem o antigo
           acento de pureza ou de perigo
           de eternos cantos, nunca passageiros.

           Sôbolos rios que cantando vão
           a lírica imortal do degredado
           que, estando em Babilônia, quer Sião,

           irei, levando uma mulher comigo,
           e serei, mergulhado no passado,
           cada vez mais moderno e mais antigo.

As iluminações
                                Lêdo Ivo
Desabo em ti como um bando de pássaros.
 
E tudo é amor, é magia, é cabala.
Teu corpo é belo como a luz da terra
na divisão perfeita do equinócio.
 
Soma de céu gasto entre dois hangares,
és a altura de tudo e serpenteias
no fabuloso chão esponsalício.
 
Muda-se a noite em dia porque existes,
feminina e total entre os meus braços,
como dois mundos gêmeos num só astro.
 
A carga
                                       Lêdo Ivo
UMA rua me conduzia até o porto.
E eu era a aruá com as suas janelas dilaceradas
E o sol depositado na areia materna.
Eu levava para a beira do mar tudo o que surgia
À minha passagem: portas, rostos, vozes, colônias de cupim e
Réstias de cebola que amadureciam na sombra
Dos armazéns providos. E sacos de açúcar. E as chuvas
Que haviam enegrecido os telhados das casas.
Era um dia de dádivas. Nada estava perdido.
As ondas celebravam a beleza do mundo.
A terra ostentava a promessa de vida.
E eu depositava a minha leve carga
Nos porões dos navios enferrujados.