Pequena bateria de poemas
Em: 23/12/2012, às 21H42
O jogo
Lêdo Ivo
No dia perdido, no dia estilhaçado,
tudo é dividido ou multiplicado.
O eu e eu duplo atravessam a praça
colados numa efígie de moeda ou selo.
O uno vira triplo no alto da escada
e se derrete ao sol como uma pedra de gelo.
O singular é plural. O vento varre
o tombadilho do navio ancorado
e um fanal de espuma aponta o momento
da última pá de cal. Então o todo e a parte
se fundem afinal em ninguém e em nada.
Descoberta do inefável
A Lêda
Lêdo Ivo
Sem o sublime, que é o poeta? Sem o inefável,
como pode louvar, não traindo a si mesmo,
a plena e estranha juventude da moça a quem ama?
Que é o poeta, que imita as marés,
sem adquirir com o tempo uma serenidade de coisa sempre nua
como se as estrelas estivessem caminhando governadas
pelo seu riso
e seus braços agitassem as árvores feridas pelo clarão da lua?
Sem que seu canto suba até os céus, sufocante música da terra,
que é o poeta?
Libertado estou quando canto. E quero
que minha respiração oriente a vontade das nuvens
e meu pensamento de amor se misture ao horizonte.
Cantando, quero outubro, gosto de lágrima, salsugem,
no instante anterior ao despertar, folha voando.
Sem o inefável, que dura sempre, sem permanecer,
como conseguirei louvar essa moça a quem amo
e que nasce em minha lembrança plena como a noite
e triunfante como uma rosa que durasse eternamente
e não se limitasse à glória de um dia?
Sem o inefável, que valoriza as mãos e faz o Amor voar,
não poderei descer de repente
ao inferno de seu corpo nu.
O sobrenatural ainda existe. E não seremos nós
que alteraremos a indizível ordem das coisas
com as nossas mãos que poderão ficar imóveis
em pleno amor, diante do corpo amado.
É inútil pensar que os anjos morreram
ou se despaisaram, buscando outros lugares.
Eles ainda estão, unidade admirável do Dia e da Noite,
entre as nuvens e as casas em que moramos.
Repentinamente, as vozes da infância nos chamam para a feérica viagem
e lembram que podemos fugir para o longe guardado ainda
no sempre.
Então, nossas necessidades não se reduzem apenas a comer,
dormir e amar.
Temos necessidade de anjos, para ser homens.
Temos necessidade de anjos, para ser poetas.
Vem, incontável música, e anuncia
(ao poeta e ao homem, humilde unidade)
a ressurreição diária dos anjos.
Restaura em mim a certeza de que a folha voando é seu indomável divertimento
pois às vezes sinto que meu primeiro verso foi murmurado talvez
sem que eu soubesse, por um anjo
perturbado com o meu ar desesperado de papel em branco.
Não é a manhã, depositando a semente de alegria no coração
dos homens.
Não é a vida, cântico triunfal descendo sobre as almas.
Não é o poeta, subindo pelos andaimes de carne da lembrança
de uma mulher.
São os anjos, que vieram ligar-nos mais uma vez
à ordem eterna e, à anunciação.
Não nos libertaremos jamais desses anjos
feitos de terra e mar, celestes criaturas
que deixam cair em nós o sol da harmonia.
É inútil matar os anjos.
Eles são invisíveis e traiçoeiros.
De repente, quando nos sentimos seguros, já não somos
os consumidores de instantes, e estamos
entre o Dia e a Noite, no umbral
de uma eternidade vigiada pelos anjos.
A Lêda
Lêdo Ivo
Sem o sublime, que é o poeta? Sem o inefável,
como pode louvar, não traindo a si mesmo,
a plena e estranha juventude da moça a quem ama?
Que é o poeta, que imita as marés,
sem adquirir com o tempo uma serenidade de coisa sempre nua
como se as estrelas estivessem caminhando governadas
pelo seu riso
e seus braços agitassem as árvores feridas pelo clarão da lua?
Sem que seu canto suba até os céus, sufocante música da terra,
que é o poeta?
Libertado estou quando canto. E quero
que minha respiração oriente a vontade das nuvens
e meu pensamento de amor se misture ao horizonte.
Cantando, quero outubro, gosto de lágrima, salsugem,
no instante anterior ao despertar, folha voando.
Sem o inefável, que dura sempre, sem permanecer,
como conseguirei louvar essa moça a quem amo
e que nasce em minha lembrança plena como a noite
e triunfante como uma rosa que durasse eternamente
e não se limitasse à glória de um dia?
Sem o inefável, que valoriza as mãos e faz o Amor voar,
não poderei descer de repente
ao inferno de seu corpo nu.
O sobrenatural ainda existe. E não seremos nós
que alteraremos a indizível ordem das coisas
com as nossas mãos que poderão ficar imóveis
em pleno amor, diante do corpo amado.
É inútil pensar que os anjos morreram
ou se despaisaram, buscando outros lugares.
Eles ainda estão, unidade admirável do Dia e da Noite,
entre as nuvens e as casas em que moramos.
Repentinamente, as vozes da infância nos chamam para a feérica viagem
e lembram que podemos fugir para o longe guardado ainda
no sempre.
Então, nossas necessidades não se reduzem apenas a comer,
dormir e amar.
Temos necessidade de anjos, para ser homens.
Temos necessidade de anjos, para ser poetas.
Vem, incontável música, e anuncia
(ao poeta e ao homem, humilde unidade)
a ressurreição diária dos anjos.
Restaura em mim a certeza de que a folha voando é seu indomável divertimento
pois às vezes sinto que meu primeiro verso foi murmurado talvez
sem que eu soubesse, por um anjo
perturbado com o meu ar desesperado de papel em branco.
Não é a manhã, depositando a semente de alegria no coração
dos homens.
Não é a vida, cântico triunfal descendo sobre as almas.
Não é o poeta, subindo pelos andaimes de carne da lembrança
de uma mulher.
São os anjos, que vieram ligar-nos mais uma vez
à ordem eterna e, à anunciação.
Não nos libertaremos jamais desses anjos
feitos de terra e mar, celestes criaturas
que deixam cair em nós o sol da harmonia.
É inútil matar os anjos.
Eles são invisíveis e traiçoeiros.
De repente, quando nos sentimos seguros, já não somos
os consumidores de instantes, e estamos
entre o Dia e a Noite, no umbral
de uma eternidade vigiada pelos anjos.
Soneto dos Vinte Anos
Lêdo Ivo
Que o tempo passe, vendo-me ficar
no lugar em que estou, sentindo a vida
nascer em mim, sempre desconhecida
de mim, que a procurei sem a encontrar.
Passem rios, estrelas, que o passar
é ficar sempre, mesmo se é esquecida
a dor de ao vento vê-los na descida
para a morte sem fim que os quer tragar.
Que eu mesmo, sendo humano, também passe
mas que não morra nunca este momento
em que eu me fiz de amor e de ventura.
Fez-me a vida talvez para que amasse
e eu a fiz, entre o sonho e o pensamento,
trazendo a aurora para a noite escura.
Lêdo Ivo
Que o tempo passe, vendo-me ficar
no lugar em que estou, sentindo a vida
nascer em mim, sempre desconhecida
de mim, que a procurei sem a encontrar.
Passem rios, estrelas, que o passar
é ficar sempre, mesmo se é esquecida
a dor de ao vento vê-los na descida
para a morte sem fim que os quer tragar.
Que eu mesmo, sendo humano, também passe
mas que não morra nunca este momento
em que eu me fiz de amor e de ventura.
Fez-me a vida talvez para que amasse
e eu a fiz, entre o sonho e o pensamento,
trazendo a aurora para a noite escura.
Firmamento
Lêdo Ivo
No dia cheio de estrelas
como a noite aguardo o vinto
que vai espalhar a minha alma
no firmamento.
Na noite da ventania
a morte será um frêmito,
o luzir de uma luz negra
no firmamento.
E tudo será silêncio
e será esquecimento
na eternidade da noite
e do vento.
Acontecimento do Soneto
Lêdo Ivo
A doce sombra dos cancioneiros
em plena juventude encontro abrigo.
Estou farto do tempo, e não consigo
cantar solenemente os derradeiros.
versos de minha vida, que os primeiros
foram cantados já, mas sem o antigo
acento de pureza ou de perigo
de eternos cantos, nunca passageiros.
Sôbolos rios que cantando vão
a lírica imortal do degredado
que, estando em Babilônia, quer Sião,
irei, levando uma mulher comigo,
e serei, mergulhado no passado,
cada vez mais moderno e mais antigo.
Lêdo Ivo
A doce sombra dos cancioneiros
em plena juventude encontro abrigo.
Estou farto do tempo, e não consigo
cantar solenemente os derradeiros.
versos de minha vida, que os primeiros
foram cantados já, mas sem o antigo
acento de pureza ou de perigo
de eternos cantos, nunca passageiros.
Sôbolos rios que cantando vão
a lírica imortal do degredado
que, estando em Babilônia, quer Sião,
irei, levando uma mulher comigo,
e serei, mergulhado no passado,
cada vez mais moderno e mais antigo.
As iluminações
Lêdo Ivo
Desabo em ti como um bando de pássaros.
E tudo é amor, é magia, é cabala.
Teu corpo é belo como a luz da terra
na divisão perfeita do equinócio.
Soma de céu gasto entre dois hangares,
és a altura de tudo e serpenteias
no fabuloso chão esponsalício.
Muda-se a noite em dia porque existes,
feminina e total entre os meus braços,
como dois mundos gêmeos num só astro.
A carga
Lêdo Ivo
UMA rua me conduzia até o porto.
E eu era a aruá com as suas janelas dilaceradas
E o sol depositado na areia materna.
Eu levava para a beira do mar tudo o que surgia
À minha passagem: portas, rostos, vozes, colônias de cupim e
Réstias de cebola que amadureciam na sombra
Dos armazéns providos. E sacos de açúcar. E as chuvas
Que haviam enegrecido os telhados das casas.
Era um dia de dádivas. Nada estava perdido.
As ondas celebravam a beleza do mundo.
A terra ostentava a promessa de vida.
E eu depositava a minha leve carga
Nos porões dos navios enferrujados.