Os contos de Cummings

Por Heitor Ferraz*

Muitos poetas deixaram contos ou poemas escritos especialmente para crianças. Poucos, como José Paulo Paes, deram prosseguimento a esta atividade. No caso de José Paulo, depois que descobriu o caminho, não parou mais. Mas Drummond, por exemplo, até onde saiba, escreveu apenas um conto. Uma história de um elefante, ou melhor, de dois. João Cabral de Melo Neto, por sua vez, não fez nada para ser publicado, mas depois de sua morte, acharam os poemas, muito lindos, por sinal, escritos para sua filha
 
É sempre um exercício, um desafio a mais, já que o poeta, com seu artifícios verbais, tem de abrir mão um tanto de suas invenções, para achar um caminho diferente e chegar direto ao ouvido da criança. Em 4 contos, que acaba de sair, encontramos quatro pequenas e belas fábulas criadas por e. e. cummings (era assim mesmo que ele grafava seu nome, em caixa baixa), um dos mais inventivos poetas da lírica moderna norte-americana. Edward Estlin Cummings nasceu em 1894, em Massachusetts, nos EUA, e morreu em 1962. Foi poeta, pintor, dramaturgo e conferencista. Dedicou sua vida ao mundo da literatura e das artes.
 
Nos seus poemas mais incríveis, este poeta trabalhou num minucioso campo de exploração da linguagem, renovando a própria palavra a partir do seu entroncamento com outras palavras, criando uma poesia ao mesmo tempo verbal e visual. No Brasil, seus poemas foram traduzidos por Augusto de Campos. Mas, na arte do conto infantil, Cummings – certamente ditado pela oralidade – seguiu uma via mais direta, mas com grande graça e beleza, como se pode ler nestes contos, traduzidos por Claudio Alves Marcondes e com ilustrações de Guazzelli.
 
Essas quatro fábulas não foram escritas com o objetivo inicial de virar livro, mas nasceram da forma mais natural possível: foram feitas para a sua primeira e única filha, Nancy, nascida em 1924; e uma delas, até onde se sabe, talvez tenha sido criada para o neto de Cummings.
 
 
Essa história familiar não é das mais tranquilas: Cummings havia se casado com a mãe de Nancy, em 1918. Alguns anos depois, eles se separaram. E Elaine Orr casou-se novamente e foi morar na Inglaterra. A distância afastou pai e filha, a tal ponto que apenas aos 28 anos, Nancy veio a saber quem, de fato, era o seu pai. E foi ele próprio quem lhe disse, durante uma sessão de pintura.
Como conta George James Firmage, no posfácio dessa edição: “Nancy e seu pai finalmente se reencontraram em 1946, mas seria apenas em 1948, quando pintava o retrato dela em seu ateliê em Nova York, que Cummings de fato contou-lhe que era o seu pai. Esse evento foi importante por vários motivos, entre os quais por levar Cummings a escrever ‘O elefante e a borboleta’”. Para Firmage, nesta bela fábula, em que um elefante passa anos sozinho no alto de um morro, totalmente isolado do mundo, até que um dia uma borboleta se aproxima da casa e os dois se tornam grandes amigos e ternos amigos, selaria esse reencontro: Cummings seria o elefante, e a borboleta, seu neto, filho de Nancy. As outras três histórias, “O velho que só perguntava ‘Por quê’”, “A casa que comeu torta de mosquito” e “A menina chamada Eu” foram inventadas para a filha. E ficaram anos e anos guardadas. Só foram editadas em 1965, por sua última esposa, Marion Morehouse Cummings.
 
Mas vamos aos enredos criados por este grande poeta, que sabia repotencializar palavras triviais, como solidão, pássaros, flores e estrelas, entre tantas outras. Palavras que, mesmo num conto mais tradicional, também surgem renovadas e frescas nestas quatro narrativas.
 
A primeira delas, “O velho que só perguntava ‘Por quê’?” passa-se no espaço, na estrela mais distante de todas, onde morava um elfo bastante respeitado por todos os habitantes estelares. E coube a ele a tarefa de dar um jeito num velho que apareceu na lua e que estorvava todo mundo perguntando “por quê” o tempo inteiro. A única e malandra saída seria despachá-lo de volta à infância. No outro conto, “A casa que comeu torta de mosquito”, Cummings, de certa forma, cria uma variação do conto “O elefante e a borboleta”: em ambos, a distância espacial precisa ser quebrada para que o mundo do afeto e da amizade seja restaurado e possa fluir plenamente. Mesmo escritos em épocas diferentes – um para o neto e outro para a filha quando pequena –, eles cantam o encontro: entre um elefante e uma borboleta, ou entre uma casa isolada no alto do morro e um pássaro.
 
Já em “A menina chamada Eu”, o poeta cria uma narrativa bem diferente: nela o narrador, que nos conta a história de uma menina e dialoga com o seu ouvinte (ou leitor, no caso do livro), num jogo de perguntas e respostas, sempre um tanto inusitadas. E a menina, chamada “Eu”, que também estava sozinha, querendo companhia para comer bolo e tomar chá, vai lançando convite aos bichos e as coisas, até encontrar com um incrível “Você”. Mais não conto, para não quebrar esse curioso espelho entre narração e audição e entre “Eu” e “Você”.
 
*Heitor Ferraz é jornalista, professor da Faculdade Cásper Líbero (SP) e autor do livro de poemas Um a Menos