[Galeno Amorim]

Uma é Maria das Graças, outra é Maria Augusta e outra, ainda, é Joanice. Elas frequentam a mesma igreja, todas estão com os filhos criados e, como a maioria das mulheres que conhecem, levam uma vidinha simples na periferia da cidade grande. Em comum também há o fato de todas elas só agora, com a idade avançando, terem, pela primeira vez, um contato de perto com as letras e os cadernos. E um sonho: ler seu primeiro livro - ou parte dele, que seja!

Mas não é um livro qualquer. As três mulheres, cada qual com sua história de vida e que se conheceram ali mesmo, não veem a hora de, finalmente, aprender a ler e a escrever. E, dominando ao menos as habilidades iniciais da leitura, estarão aptas para ler... a Bíblia! Querem buscar lá, e de certo modo certificarem com os próprios olhos aquilo que o coração já sabe, as passagens evangélicas e as palavras que tanto mexem com cada uma delas, ajudando a robustecer sua fé.

Dona Joanice Gomes de Oliveira, 62 anos, se contentaria se pudesse, ao menos, ler um salmo inteiro até o fim. Ela até já decorou algumas passagens da Bíblia. Mas agora que conseguiu, afinal, realizar o desejo de entrar pra escola, ela quer mais. Ela já foi de tudo na vida: cozinheira, faxineira, lavadeira, servente... Deu um duro danado para criar os cinco filhos, dois dos quais adotivos. Mas tempo mesmo para estudar, isso ela nunca teve.

No Alto Vera Cruz, bairro pobre de Belo Horizonte, essa é a história de muita gente. Dona Maria das Graças da Silva, 64 anos e mãe de 19 filhos, dez dos quais ainda vivos, tem uma mais prosaica. Não podia ir à escola em Jequeri, na Zona da Mata, pois lá, segundo o pai, certamente se assanharia atrás de arrumar namorado... Acabou analfabeta.

- Quê o quê de ter tempo pros cadernos... Precisava mesmo era de botar comida na boca dos meninos, isso sim!

O problema, ela só muito tempo mais tarde descobriria, é que uma pessoa sem leitura não conseguiria ir muito longe:

- É a pior coisa que existe. Não podia andar sozinha, não sabia o preço de nada, não conseguia pegar um ônibus... O mundo era feito de códigos e eu não conseguia decifrar nada disso.

A vizinha, Dona Maria Augusta Souza, 79 anos, é quem dá a letra:

- Analfabeto até acha emprego... Mas é sempre de faxineira, lavadeira, servente de pedreiro. Passa humilhação e ganha pouco. Tá tudo praticamente fechado para quem não lê...

A Bíblia, das diversas religiões cristãs, é a porta de entrada para o mundo da leitura para boa parte dos brasileiros. É o livro mais lido, mais relido e o que mais mexeu com a vida das pessoas país afora. Mesmo entre aqueles que se declaram não leitores (e o país tem 77 milhões deles!), um em cada dez, segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, dá pelo menos uma espiada, de vez em quando, no livro sagrado.

Muitos só lerão, até o fim de seus dias, alguns poucos versículos, toda noite, na hora de dormir, e às vezes pela manhã, ao acordar. Melhor que nada. Outros irão descobrir mais alguns livros, uns religiosos e outros nem tanto. E há, ainda, aqueles, talvez uma minoria, que se tornarão grandes leitores para todo o sempre.

Mas o caso é que uns e outros experimentarão certas mudanças em sua vida. Em certos casos, da água pro vinho. E tudo graças a um simples pedaço de papel, sobre o qual seguem impressos certos sinais tipográficos que, no caso de gente como dona Maria das Graças, dona Maria Augusta e dona Joanice, até bem pouco tempo antes, não passavam de meros enigmas, sem significado algum.