0

O INFERNO DE DANTE, CANTO UM

 


            Leiamos o início da “Comédia”:
 

A meio do caminho desta vida
achei-me a errar por uma selva escura,
longe da boa via, então perdida.
Ah! Mostrar qual a vi é empresa dura,
essa selva selvagem, densa e forte,
que ao relembrá-la a mente se tortura!
Ela era amarga, quase como a morte!
Para falar do bem que ali achei,
de outras coisas direi, de vária sorte,
que se passaram. Como entrei, não sei;
era cheio de sono àquele instante
em que da estrada real me desviei.

           Assim começa o Poema. A tradução é a mais bela tradução, a de Cristiano Martins (Belo Horizonte, Villa Rica, 1991).
           O meio da vida, 35 anos, dizem (valho-me das notas do tradutor). A selva seriam os vícios, os erros. O “bem”, achado ali, seria Virgílio e o Paraíso. A Floresta apavora, era a Morte. Mas o poema promete contar a viagem, a grande viagem, na selva da vida, do Inferno.
           Que significa o sono?
           Talvez a desatenção, o descuido, o entregar-se aos prazeres dos sentidos, desatento, esquecido.
           Mas tem um componente político importante: a desatenção política, o erro político, que a vida de Dante sempre nos revela. A política é a selva selvagem. E escura.

Chegando ao pé de uma colina, adiante,
lá onde a triste landa era acabada,
que me enchera de horror o peito arfante,
olhei para o alto e vi iluminada
a sua encosta aos raios do planeta
que a todos mostra o rumo em cada estrada.

           Mas o Poeta prossegue. Consegue ver alguma coisa aos primeiros raios do sol. A landa é um descampado. Palavra rara. Ele vê a encosta iluminada pelos raios do sol. E seu medo, pela luz, diminui. Mas pouco. E ele olha para trás, como um náufrago olha, vê a escuridão. E repousa. Volta a andar. Tateando. Passo a passo:
Um pouco a onda do medo foi quieta
que de meu peito no imo se agitara
durante a noite de aflição secreta.
E como aquele a quem já o sopro para,
saindo da água à praia apetecida,
volta-se, fita o pélago, e repara
- assim, a alma em torpor, naquela lida,
voltei-me a remirar, atrás, o passo
de que jamais saiu alguém com vida.
Depois de repousar por breve espaço,
fui trilhando a ladeira, ampla e deserta,
bem devagar, tateando a cada passo.

           Mas o que era, até ali, bom e calmo, se dissolve: na visão do animal selvagem, terrível - a pantera, que significa a luxúria, ou a cidade de Florença.
Quase ao começo da subida aberta,
eis vi uma pantera, ágil, fremente,
de pele marchetada recoberta.
Do rosto sempre se me punha à frente,
a tal ponto o caminho me impedindo,
que eu tinha que recuar constantemente.

           Era no amanhecer.
           E depois também aparece um leão, simbolizando a soberba, a violência:

Era o instante em que a aurora ia surgindo,
e o sol subia, ao lado das estrelas
que o seguem desde que o poder infindo
tirou do nada tantas coisas belas;
do animal a vivaz coloração
fez-me pensar, ansioso por revê-las,
na alta manhã, na plácida estação;
mas não sem que eu tornasse ao desalento
ante a súbita vista de um leão.
Parecia, raivoso, a juba ao vento,
vir contra mim, de jeito tão nefando,
que até o ar se crispava, num lamento.

           E mais. Mais. Aparece a loba, que representa a Avareza. Ou a Inveja. Principalmente a Inveja Avarenta.
Seguiu-se magra loba, demonstrando
à pele os ossos, e que à ira incontida
a muita gente andou exterminando.
Veio-me um senso tal de despedida
ante a aparência rábida da fera,
que perdi a esperança da subida.
Como quem a acrescer seus bens se esmera,
mas se lhe chega o tempo da ruína
só pensa nisso, e chora, e desespera
- assim eu me sentia ante a assassina,
que, vindo contra mim, me foi forçando
de volta aonde ó sol nunca ilumina.

           “Rábido”, raivoso, irado, o animal o obriga a recuar para as regiões sombrias, talvez da noite, talvez a Morte. O impedimento.
Enquanto eu tropeçava, e ia tombando,
algo enxerguei que se movia perto,
a um tufo silencioso semelhando.
Ao ver aquele vulto no deserto,
"Piedade!", eu lhe gritei, "ouve os meus ais,
sejas tu uma sombra ou homem certo!"

           Só então aparece Virgílio. “Na verdade, és meu mestre e meu autor”, diz o Poeta, diz para o seu Modelo Poético, seu Mestre Virgílio. Dante é salvo pelos seus pecados, pela poesia, pela literatura, pois Virgílio lhe diz: “Convém fazeres uma nova viagem”, uma nova Poesia. Pois a Inveja é sua Ruína, que diz Virgílio:
A fera hedionda, que te pôs clamando,
não franqueia a ninguém a sua estrada,
e a quem encontra nela vai matando.
De natureza crua e depravada,
alimento nenhum pode saciá-la;
quanto mais come é mais esfomeada.

           E o Poeta Virgílio se oferece como Guia Literário, pois Dante, para sair daquela posição, vai atravessar o Inferno. Para sair de um infortúnio, temos de mergulhar fundo na dor, no seu agravamento.
...................te guiarei quanto antes
pelos fundos desvãos do sítio eterno,
onde ouvirás os gritos lancinantes,
e verás os espíritos dolentes
que nova morte choram, pior que a dantes.

           Depois o Purgatório:
Verás também aqueles que contentes
no fogo estão, porque inda esperam ir
juntar-se um dia às venturosas gentes.

           E outro Guia, a amada Beatriz, conduzirá Dante pelo Paraíso. Virgílio, romano e pagão, não poderia entrar ali. Beatriz é a Musa perfeita, o tema modelar da poesia lírica. O amor é o Paraíso. Beatriz é “alma melhor que a minha”. Eu disse: "Poeta, rogo-te, afinal, ... me conduzas...”
Moveu-se, então, e o acompanhei de perto.