O futebol segundo Jairzinho
Por Bráulio Tavares Em: 14/09/2010, às 15H42
[Bráulio Tavares]
Minha convicção, até prova em contrário, é de que jornalismo se aprende na redação, natação na água e futebol no campo. Este último merece detalhamento. Campo não é um gramado impecável, onde um garoto calça chuteiras e ganha intimidade com uma bola de couro, jabulani ou não. Campo é o campinho, o campinho de terra ou de capim, ou mesmo uma rua calçada de pedras, onde garotos descalços jogam com qualquer coisa que possa ser imaginada como uma bola.
Numa entrevista recente ao Globo, Jairzinho, campeão do mundo em 1970, resume essa raiz popular do futebol de maneira irretocável: “O futebol moleque acabou, o futebol formado num ambiente livre, natural. Eu mesmo fui formado assim. Nas praias, Urca, Praia Vermelha, Praia do Leme; nos terrenos baldios, que ainda existiam; nas praças também. E na própria rua, numa época em que não havia congestionamento de carros. Comecei brincando com laranja, depois com bola de meia, depois com bola de borracha, toda essa evolução natural, entende? Hoje, para você encontrar um espaço é muito difícil. Não tem mais o campo natural, onde o garoto possa jogar sem cobrança. Se os garotos não forem para praia, vão para o futebol, o futsal e com isto perdem a naturalidade. Porque já tem um professor ali e a bola já é bem diferente. O importante é você começar a ter o contato (com a bola) com o pé descalço.”
O que faz o jogador brasileiro ser diferente? (Não só brasileiro, claro. O que acontece aqui pode acontecer em praticamente qualquer lugar do mundo. Mas aqui ocorre de maneira maciça e generalizada – ou pelo menos acontecia.) Primeira coisa: jogar na rua, aprender a correr em qualquer tipo de espaço, cercado pelos obstáculos mais imprevisíveis. Carros estacionados, carros em movimento, muros, árvores, postes, tocos de pau, buracos, pilhas de tijolos... Garotos jogam, há um século, em lugares assim, e é lá que aprendem a correr com ou sem a bola nos pés, a negacear, a fugir, a perseguir o atacante, a chutar, a defender, a passar, a cruzar. O senso de espaço é enriquecido de maneira espantosa.
Segundo: jogar sem cobrança, por vontade própria, diversão, espírito lúdico. Profissionalismo é importante, mas vem depois, e tem que vir sobre um alicerce prazeroso. Tudo que um garoto ou adulto faz por mero prazer ele fará incansavelmente, repetidamente, incessantemente, variadamente, concentradamente, dedicadamente.
Terceiro: o pé descalço e a bola de meia. Os músculos, o sistema motor e os reflexos se enriquecem ao serem testados de mil maneiras diferentes, preparando-se para as meras 100 ou 150 maneiras que lhes serão exigidas na vida adulta, na mordomia da grama, da chuteira e da bola de couro. Futebol profissional tem uma faixa de probabilidades mais estreita do que a de uma pelada de rua. Um garoto se torna PhD em futebol jogando com laranja chupada num campinho de terra, e a maestria assim adquirida será o alicerce para o profissional em que um dia se tornará.