O carnaval e a imagem urbana
Em: 25/02/2009, às 11H31
Por Almandrade
A festa e a transgressão fazem parte da natureza do homem. São
dispositivos acionados pelo homem para resgatar estados de alegria ou
transe, no conflito entre o sagrado e o profano. O carnaval além de
ser uma festa que contamina toda uma cidade, é uma forma de
apropriação urbana que altera sensivelmente a imagem, a ordem e os
valores que regem e fazem o estilo de vida dos outros dias do ano,
fazendo da cidade o lugar de uma orgia coletiva. Não podemos
desconhecer que 'o erotismo é um dos aspectos da vida interior do
homem' (Bataille). Mas o que vem acontecendo ultimamente é uma espécie
de publicidade do sexo onde o erótico é apenas uma mercadoria do
circuito de economia libidinal, muito bem aproveitada pela indústria
do turismo e pela mídia, resultando em retornos significativos para a
economia dominante. Portanto, o cotidiano material e simbólico se
reproduz no carnaval, fazendo da rebeldia um comportamento possível e
suportável de distração e recuperação da força de trabalho.
Os sacrifícios das sociedades primitivas, como o 'potlatch', eram
meios de devolver ao mundo sagrado o que a relação servil do homem com
o trabalho tornou profano. O trabalho recalcou a 'intimidade', e esta
passou a ser recuperada nos cultos, nas oferendas aos deuses, nas
festas, nos sacrifícios, nas chamadas 'despesas improdutivas'. "Em
seus mitos estranhos, em seus ritos cruéis, o homem está antes de tudo
em busca de uma 'intimidade perdida'" (Bataille). A ocupação da cidade
por um ritual frenético, que tem o riso e o erótico como
desarticuladores da seriedade do mundo da mercadoria, é sem dúvida, o
sacrifício da sociedade moderna, onde tudo pode ser reciclado para o
espetáculo da mercadoria. Hoje, o carnaval é uma mercadoria exótica e
pitoresca, que interessa principalmente ao viajante de lugar nenhum, o
turista, muito bem produzida, embalada e vendida, durante todo o ano.
A atividade do ano não é redutível à reprodução, conservação e
consumo. George Bataille a divide em duas partes: a primeira, diz
respeito ao uso do mínimo necessário, para os indivíduos de uma
sociedade, manter a conservação da vida e a continuação da atividade
produtiva. A segunda, são as despesas improdutivas: as festas, os
cultos, o luxo, os jogos, os espetáculos, etc. O carnaval faz parte
dessa categoria de despesa, sua função é desperdiçar o excedente, o
que precisa ser gasto. As manifestações políticas, étnicas e
culturais, pulsões recalcadas, revoltas sociais fazem parte do
circuito da economia simbólica. Se a cidade é o centro das operações
mercadológicas do capitalismo, durante o ritual carnavalesco, ela é
reorganizada, por um urbanismo meio perverso, para permitir a
comercialização e o desperdício do erótico, da libido e da violência.
A cidade é percorrida pelo lúdico, pela sedução e até pela apelação
direta ao sexo, como registra as campanhas dos preservativos. Mas este
desperdício e esta socialização promovidos pela orgia contagiante, não
estão em contradição com a cumulação e concentração de renda.
A festa invade o centro e sub-centros da cidade, imprime uma outra
paisagem física e social. O lugar do trabalho, da produção e do
consumo, das atividades humanas de conservação e reprodução é
destinado a outras atividades, outras marcas e outras identidades. Uma
estranha cidade portátil é construída dentro da antiga, tendo as
barracas de bebidas alcoólicas como principal serviço urbano. Uma
multidão consumidora e espetacular, e um território fantasmagórico se
erguem, subvertendo momentaneamente a aparente racionalidade urbana.
Se na análise de Jean Baudrillard, a sedução é mais forte que o poder,
a produção e até mesmo a sexualidade, o carnaval parece comprovar tal
afirmação, quando não faz uma apelação agressiva do sexo. Neste
audacioso ritual de libertinagem, patrocinado pelo poder e pelo "bom
senso" de uma sociedade indiscretamente moralista, a cidade é o palco
da sedução.
Entre o homem e o mundo existe a linguagem. Uma pele semiótica
transparente, sem a qual o homem estaria isolado, sem relacionamentos
e sem limite diante do conhecimento das coisas e dos seres. A
convivência na cidade implica no domínio de uma linguagem; o urbano
tem seus códigos que legisla seu uso. O carnaval como uma performance
de transgressão e inversão do sistema de signos urbanos, desfaz o
código cotidiano de relacionamento do sujeito coma cidade,
estabelecido pelo compromisso produção/ consumo, e inventa uma
semiótica determinada pelo excesso, pela ironia e pelo grotesco. Na
imagem da cidade do carnaval é determinante a sintaxe da obscenidade,
da orgia, da perversão simbólica. A violência, motivada por vários
fatores, faz parte da festa e contribui na definição da imagem e da
publicidade do carnaval.
Sob o efeito do carnaval a cidade troca de função e de sentido. A
sinalética usual passa a ser um conjunto de significantes mortos e é
substituída por uma outra que sinaliza o urbano nos dias do império do
Momo. A cidade troca de som, de cheiro, de visual, e uma multidão
invade as ruas e praças embriagada pelo ritual. Sujeitos urbanos
voltam simbolicamente ao estado tribal; fantasiados, assumem outras
identidades, atrás de outras expectativas. O urbano torna-se um espaço
terapêutico, onde transita paralelamente a economia política e a
economia libidinal. As rígidas divisões: público/ privado, sagrado/
profano são suspensas temporariamente para liberar os fluxos das
energias reprimidas. O carnaval forja uma realidade, assim como a
sociedade para legitimar as relações de poder, inventa um princípio de
realidade igualmente autoritário. Com uma diferença no carnaval, não
existe uma lógica fora da paródia e da excessividade, imperando um
simbolismo total e um jogo de sentidos onde as regras são improvisadas
a todo momento.
O antigo centro da cidade do Salvador é ocupado por um acontecimento
excêntrico, na história da cidade, mas que se repete todos os anos,
durante o verão, como um fenômeno de massa, cada vez mais
industrializado e menos espontâneo. O centro histórico, que já esteve
ameaçado de abandono e decadência, volta a ser o cenário principal do
grande baile eletrizado de multidões que escaparam do mundo do
trabalho. A praça Castro Alves é o auge, uma das principais zonas
erógenas do carnaval, onde quase tudo acontece; é disputada palmo a
palmo por foliões que redescobriram o corpo e sua energia. Mas as
relações de trabalho não foram totalmente abolidas, existem os
operários do carnaval, que são: os músicos, os funcionários dos trios,
seguranças dos blocos, os policiais mobilizados para manter a ordem e
conter a violência, os funcionários de saúde de plantão, os vendedores
improvisados, os barraqueiros, as baianas de acarajé, os jornalistas,
etc. Eles formam uma infra-estrutura mínima de serviços que garantem a
realização da festa.
Toda a rebeldia "surrealista" que aparece na imagem do carnaval é
solidária com o realismo diário do mundo do trabalho, do lucro e da
exploração. A instituição carnaval, com toda sua carga simbólica, não
escapou do processo de administração empresarial capitalista. Por
exemplo, os blocos são organizados como empresas reproduzindo a
divisão social, racial e sexual, além de, independentemente da festa,
a parte burocrática e financeira funciona durante todo o ano. Surge
uma nova e simbólica noção de propriedade privada, o percurso da rua é
lotado entre blocos com seus trios elétricos exclusivos, contornados
por uma corda e seguranças, não sendo permitido, naquele território,
foliões sem a fantasia do bloco. O trio elétrico, na atualidade, e
mais o produto de uma engenharia musical, que não importa muito a
qualidade da música, reunindo em torno de si uma comunidade
selecionada de foliões.
A cidade é um texto, sempre reescrito e reinterpretado, a todo
instante confirma o 'hiper-realismo' do carnaval que magnetiza e
subverte o sentido do espaço físico com a autonomia do simbólico. A
volúpia da cidade mundana, a hemorragia do desejo recalcado, a
circulação do sexo e a descontração frenética são as referências do
processo de significação, marcantes da paisagem urbana na cidade do
carnaval.