Nas estantes de Cunha e Silva
Em: 03/04/2024, às 21H51
Cunha e Silva Filho
(Da Academia Brasileira de Filologia- ABRAFIL)
Meu pai, se estivesse ainda entre nós, estaria com cento e oito anos. Ele é 03 agosto de 1905. Embora em seus documentos constam que nasceu em 1904. Por falar nisso, nos registro de matrícula que o seu correspondente aqui no Rio, o advogado Joaquim Pires levou à direção do Colégio Santa Rosa, em Niterói, pude ver uma cópia, segundo a qual constava, no Registro de Nascimento a data de 3 de agosto de 1904 com data de seu nascimento. e seus pais se chamavam Manuel Alexandre e Silva e Candida da Cunha e Silva.
Entretanto, foi meu próprio pai que me afirmou, em conversa, que nascera no ano de 1905, e não de 1904, Foi justamente a razão do seu reparo, em carta a mim, referindo que o meu artigo-homenagem fora escrito antecipadamente. Eu até fiquei surpreso e meio sem graça, ou como se dizia há algum tempo, perdi o rebolado... Quando lhe preparei uma brevíssima introdução ao seu livro de estreia, "A República de mendigos", publicado aqui no Rio pela Gráfica Editora Carioca(1987), nas orelhas, usei a data de nascimento do ano de 1904.E o curioso é que ele nem me fez reparo algum sobre nada..
Por outro lado, cumpre assinalar que, em quase todos os textos de história literárias de autores piauienses ou em outros textos que registram a data de seu nascimento, só aparece o ano de 1904. O motivo foi o seguinte: quando ele completou oitenta anos a fim de prestar-lhe um homenagem escrevi um artigo até logo falando sobre a sua pessoa, sua atividade jornalística intensa e sua carreira de escritor e de professor catedrático de História do Brasil da Escola Normal “Antonino Freire,” em Teresina, mandei para o jornal Estado do Piauí, cujo proprietário era o jornalista Josípio Lustosa, periódico em que, de resto, eu mesmo publiquei alguns artigos já morando no Rio de Janeiro.
Não importa qual seja o ano certo do não de seu nascimento, quer seja 1904, quer sejam 1905. O que releva mesmo é a sua figura. A sua personalidade, Faltava um ano para o centenário de meu pai, o professor e conhecido jornalista Cunha e Silva. Parecia, na época em que escrevi o artigo ora republicado e atualizado, um sonho que estivesse prestes a completar cem anos. Realmente, a geração a que pertenceu, a da primeira metade dos anos 10 do século passado - esse século 20 fabuloso no desenvolvimento das ciências e das artes e ao mesmo tempo devastador pelas marcas profundas de sofrimento deixadas pelas duas grandes guerras, revoluções, ditaduras e holocaustos -, está desaparecendo. Seus homens ilustres, seus intelectuais já praticamente não mais se encontram entre nós.
Entretanto, a saudade, sentimento que me acompanha desde o final da adolescência, cujo marco data de minha saída de Teresina para o Rio de Janeiro, teima em me revisitar e, desta vez, para o recanto íntimo - o espaço fisicamente pequeno e, ao mesmo tempo, intelectualmente amplo -, formado de uma escrivaninha, uma cadeira e duas grandes estantes velhas apinhadas de livros e de recortes de jornais e revistas que se perderam nas traças do tempo. Foi nesse espaço, pertencente mais a dimensões mentais e afetivas do que à materialidade, ou melhor, à exiguidade física de suas dimensões que, mais uma vez penetrei e cheio de sobressaltos, alegrias e também de instantes epifânicos inenarráveis. Foi ali que, de repente, me peguei lendo fluentemente um texto em inglês sem auxílio de dicionário.
Ao transpor as vastidões de seus mundos de seres imaginados, ações, tramas, tempos, ideias, erudição e subterrâneos espirituais, me encontro transportado para aquele canto modesto que sempre foi o “quarto-biblioteca” de meu pai, quarto mais virtualmente mentado visto que meu pai mudava muito de residência, pois nunca tivera casa própria.
A imagem sempre fora quase a mesma, aqueles móveis já mencionados. Por algum tempo, havia sobre a escrivaninha um globo terrestre e, nos últimos tempos, descansava sobre a escrivaninha uma máquina de escrever. Em sua longa vida, sempre escrevia à mão. Seus artigos e livros eram, depois, passados à máquina por pessoa de casa. Completavam a descrição as duas redes de meus pais, estendidas ou enroladas nos armadores, Era, em suma, uma quarto de estudos e uma alcova.
No entanto, o meu foco, em flashback, vai certeiro às prateleiras – locus amoenus privilegiado, por onde me levam as mãos sequiosas por esquadrinhar o acervo bibliográfico diminuto, mas de primeira plana – vasto “baú de ossos”, valendo peso de ouro, onde podia me deparar com Dostoiévski, Górki, Camões, ,José Ingenieros, Nietzche, Flaubert, Paul Bourget, Eça de Queirós, Coelho Neto, Humberto de Campos, Machado de Assis, Lima Barreto e muitos outros autores de ficção e poesias, além de tratados de filosofia, psicologia, ciências políticas, sociologia, antropologia história, física, geografia, química, compêndios antigos de matemática (me lembro dos volumes de Antônio Trajano, de aritmética e a álgebra). Havia também um tratado de filosofia em italiano, obras em francês. Surpreendentemente, o acervo ainda continha compêndios de gramática latina, francesa, inglesa, assim como obras de referências valiosas, tais como os melhores dicionários de latim, inglês, francês, português.
Voltando às estantes, lá havia umas obras de Berilo Neves (1901-1974), escritor piauiense e crítico literário que fora morar no Rio de Janeiro e lecionou ser no centenário Colégio Militar do Rio de Janeiro (CMRJ), conceituado colégio em que igualmente lecionei até me aposentar. Os volumes de Berilo Neves tinham títulos que me amedrontavam: A mulher e o diabo (1930) ou, quem sabe, O diabo em férias. Eu tinha então treze ou catorze anos. Por medo, não li aqueles livros...
Meu pai, quando chegava em casa – penso agora – bem achava esquisito que aquele menino, em vez de estar lá fora na rua, brincando ou mesmo conversando com outros meninos de sua idade, estivesse costumeiramente colado ao quarto das estantes, folheando livros, examinando-os, lendo-os, desistindo de alguns e, sobretudo, remexendo nos livros para o ensino de línguas.
Na realidade, me autonomeava, então, o “warde”r daquela “biblioteca” (achara solene aquela palavra em inglês encontrada na leitura de um prefácio de Jônatas Serrano a uma de suas obras de história) – lugar de refúgio para a multiplicidade de interesses do leitor-mirim.
Após minha saída de Teresina, aquela pequena Alexandria se foi desmoronando. Outras vezes, que voltei em visita a meus pais, já vinha reparando na decadência da “biblioteca”. Quanta tristeza! Ainda bem que, vindo para o Rio, ainda consegui trazer uns poucos volumes de papai, que guardo com o mesmo zelo daqueles tempos juvenis. Nas estantes já faltavam livros de importância, os bons dicionários francês, os ode inglês, que consultava anto enleado com a s palavras e os verbetes com as traduções e as abonações deliciosamente lidas pelo adolescente de então. Ubi sunt? Não havia quem deles cuidasse como só eu podia faze-lo. Ainda hoje deploro não ter dito a papai: “Eu quero levar todos os seus livros pro Rio”.
No Rio de Janeiro, estariam sob a minha custódia e a salvo de serem despedaçados ou serem perdidos, ou levados por alguém que não teria o mesmo zelo que tenho pelos livros legados por meu pai - esses maravilhosos tomos, (alguns hoje são já centenários, do tempos do Segundo Império, como o livro de Antônio Henriques, de título Lucubrações. Na primeira página lê-se, embaixo da mesma página, a seguinte informação editorial (vou respeitar a grafia da época. O historiador Alfredo Bosi cometeu um descuido afirmando, no seu livro de resto, um notável livro pela importância que teve e tem entre estudantes de Letras e estudiosos de literatura brasileira,ao ao afirmar que Antonio Henrirques Leal era português. Ledo engano do saudoso historiador literário e altíssimo ensaísta brasileiro.
“A venda no Maranhão. Livraria Popular de Magalhães & C. Editores e Proprietários 23 Largo do Palacio, 23 1874. Ciências e Letra, de Antônio Henriques Leal (natural do Maranhão)
Essa obra fora um presente passado às mãos de meu pai com a data de 25/11/29. O talhe da letra era bonito e claro. Diz: “Ao parente e amigo e Cunha e Silvo oferece Francisco Ayres.
Tratava-se de um amigo de meu pai, o Dr .Francisco Ayres, médico famoso em Amarante, município do Piauí, que foi o berço natal de meu avô paterno, do meu pai, meu e de quatro irmãos. O meu irmão, o primogênito, faleceu ainda bebê. Seu nome era Lincoln Meu pai, professor e estudioso de história geral e história do Brasil, tinha a mania de dar nomes a alguns de seus filhos tirados de figuras ilustres brasileiras ou estrangeiras. a quem admirava como Lincoln( em homenagem ao excelso presidente dos EUA), Winston (o grande primeiro-ministro inglês na Segunda Guerra Mundial) Roosevelt (uma homenagem de meu pai ao vitorioso presidente Franklin Delano Roosevelt), Ariosto, Evandro (talvez porque admirava o jurista Evandro Lins, Eneida, certamente inspirado em Eneida, poema épico escrita por Virgílio, poeta latino, obra-prima da literatura universal. Minha irmã Eneida também faleceu ainda bebê ) etc.
Às vezes, penso que papai até se aborrecia com a insistência daquele menino que estava sempre remexendo-lhe nos livros, dicionários, revistas e recortes de jornais antigos – materiais de sua lavra guardados desde a mocidade, do início de sua operosa e longa atividade jornalística.
Aquele espólio, hoje, me pertence mais do que ontem. Ele existe, permanece na minha memória de adulto. Como tal, ainda que me debulhando em lágrimas, me vejo debruçado, menino, sobre tantas páginas, tantos lugares visitados pela imaginação de sábios escritores. Além disso, procuro entender por que papai, grande amigo também dos livros, havendo reunido, ao longo de uma vida sacrificada, seus queridos e fieis companheiros de papel, pudesse sentir uma pontinha de ciúme daquele menino mexilhão que, sem pedir-lhe licença, invadia-lhe aquele espaço intocável, fascinante, mágico...
NOTA:
Artigo primeiro publicado em jornal de Teresina, Piauí, depois no meu blog "As ideias no tempo", no site Entrextos. Direção de Dílson Lages e no meu livro As ideias no tempo.Teresina, PI: Gráfica do Senado/ Academia Piauiense de Letras, 2010