Mestrinho ou Plínio e o louco
Por Flávio Bittencourt Em: 21/03/2010, às 19H23
Mestrinho ou Plínio e o louco
Antiga anedota foi adaptada em cenário político amazonense de uma época que não voltará.
22.3.2010 - Antônio Corrêa Neto recontou a velha estória engraçada - Gilberto Mestrinho e Plínio Ramos Coelho foram líderes políticos amazonenses. Ambos infelizmente já faleceram. Eram muito estimados tanto na capital, quanto no interior do grande estado da Amazônia Ocidental e estão na anedota reelaborada por Antônio Corrêa Neto. Adiante, você poderá ler também o artigo "Jornais de Manaus: fenômeno efêmero?", cujo autor é Lúcio Flávio Pinto. Logo em seguida está a resenha que Marta Barbosa produziu sobre uma reunião de contos de Milton Hatoum. O título da obra é A cidade ilhada. Por fim, está "Varandas da Eva", desse consagrado escritor amazonense, conto que não ficou de fora da referida coletânea. No portal UOL, o conteúdo do livro que contém a citada narrativa curta foi descrito da seguinte forma: "(...) A Cidade Ilhada, de Milton Hatoum, [foi] publicado no Brasil pela [Editora] Companhia das Letras. O livro reúne 14 contos do autor, seis deles inéditos em português, que colocam a cidade de Manaus como o ponto central de cada trama".
(http://entretenimento.uol.com.br/ultnot/livros/trechos/2009/03/27/ult5747u53.jhtm).
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(http://www.correaneto.com.br/contos/louco.htm)
(http://covildooresama.blogspot.com/2009_04_01_archive.html)
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LÚCIO FLÁVIO PINTO, de Belém, ESCREVE SOBRE OS JORNAIS de Manaus
20.01.10 - BRASIL |
Lúcio Flávio Pinto *
Manaus tem quase 1,8 milhão de habitantes, dos quais 965 mil lêem jornais. É o segundo maior índice de leitura de jornais do Brasil, superado apenas pelo de Porto Alegre, que é de 73%, segundo pesquisa do instituto Ipsos Marplan, divulgada no final do mês passado. Quem encomendou o trabalho foram os jornais Diário do Amazonas e Dez Minutos, do mesmo grupo empresarial, a Editora Ana Cássia. Eles seriam lidos por 726 mil das 965 mil pessoas que constituem o mercado de jornais impressos da capital amazonense. Um índice formidável de domínio de 79%. Ainda mais porque Manaus tem sete jornais diários, enquanto em Porto Alegre eles são apenas três.
Com essa pesquisa, os donos da corporação procuram demonstrar o acerto de suas decisões. O jornal mais antigo, o Diário, tem uma tiragem menor, mas é mais influente, por ser o preferido pelos leitores com mais de 35 anos. Já o Benjamin da cadeia, que tem menos de um ano e meio de vida, se tornou o de maior vendagem no Estado, por conquistar o público da faixa entre 18 e 24 anos, com tendência a se dissociar da imprensa convencional ou abandoná-la por completo. A conquista foi facilitada pelos preços dos jornais, o Diário a 50 centavos e o Dez Minutos a 25 centavos, os menores da praça.Pelos dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC), a tiragem paga do Dez Minutos é de 63 mil exemplares, que o coloca em 12º lugar no ranking nacional, e a do irmão mais velho fica próxima de 20 mil. Para cobrirem todo o público que lhes é atribuído, cada exemplar deve ser lido por 10 pessoas, o dobro da média máxima constatada em pesquisas sistemáticas (ou mais do triplo do índice médio de leitura). Os dois jornais amazonenses estariam circulando por mais mãos, o que pode favorecer o crescimento da vendagem mais adiante. Se a amplitude não for fantasiosa.
Não consegui ter acesso à íntegra da pesquisa para poder analisá-la melhor. Ela confirmaria a tendência recente, sobretudo a partir da concorrência da internet, de preferência do público por publicações impressas de leitura fácil, aparência atraente e com recursos para conquistar leitor (mulher nua, crime, esporte, show-bizz, fofocas e promoções comerciais). Mas se a pesquisa da Marplan está certa, há um componente específico no caso amazonense para explicar o crescimento espantoso do Dez Minutos em tão pouco tempo. Superou não só os seus concorrentes estaduais como quebrou a tradicional hegemonia dos jornais de Belém, que nunca haviam sido perturbados por qualquer outra publicação regional.
De certa forma o índice de leitura dos dois jornais traduz a supremacia de Manaus, que tem o 7º maior PIB dentre as capitais do país, sobre Belém, que ficou na quarta pior posição. O índice de riqueza material, por outro lado, é produto da maior diversificação econômica e social da capital amazonense, com a presença marcante do imigrante, tanto pessoa física quanto jurídica. Ele não conhece a história local nem tem compromissos com sua elite mais antiga.
A Zona Franca atraiu empresários e executivos, mas também técnicos e operários. Eles passaram a ter acesso a uma versão mais convencional do modelo de jornais expressos, que é o Diário, e outra mais ao gosto popular, mas ambas com o atrativo de uma aparência de independência e dinamismo que faltou aos concorrentes, sobretudo o grupo de A Crítica, com 60 anos de atividade (e líder disparado durante a maior parte desse período).
A versão fast-food da família Calderaro, o Manaus Hoje, não deu para a competição e o órgão tradicional não se renovou. O grupo do Diário obteve vitória completa, algo que a família Maiorana não conseguiu com sua dupla O Liberal-Amazônia contra o Diário do Pará, que imobilizou o segundo jornal dos oponentes com um caderno de polícia sensacionalista e anúncios classificados populares. Ao invés de esmagar o adversário, a aplicação paraense da fórmula provocou mais autofagia do que expansão.
Essa é mesmo a fórmula do sucesso, veio para ficar e será o meio de reposicionar os jornais no universo das mídias? Ainda é cedo para apresentar uma resposta. No caso do Amazonas, os baixos preços só poderão ser mantidos se surgirem novas formas de faturamento - ou nos próprios jornais ou agregando novas mídias, como a televisão, que o grupo Ana Cássia não tem. Esse investimento também dependerá do futuro da Zona Franca, atingida pelos efeitos positivos e negativos do câmbio atual e da crise internacional. E pela própria posição editorial que os jornais assumirem a partir da campanha eleitoral, identificados com o público ou com os grupos políticos. De qualquer maneira, o fenômeno Dez Minutos tem um efeito proveitoso: obriga quem quer entender o que acontece a examinar os fatos com mais atenção, rigor e lucidez". (LÚCIO FLÁVIO PINTO)
* Jornalista paraense. Publica o Jornal Pessoal (JP).
Uma Manaus no centro do mundo permeia as histórias do livro de contos de Milton Hatoum
Colaboração para o UOL
O autor Milton Hatoum coloca Manaus como ponto central de histórias contadas no livro "A Cidade Ilhada"
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Dos contos apenas seis são inéditos em português. A maior parte foi publicada em jornais, alguns foram apresentados em congressos de literatura, outros saíram em antologias anteriores. A reunião deles nesse livro é uma prova da versatilidade do autor, cujo universo literário permite ao leitor viajar de Paris a Berkeley sem se distanciar do clima úmido e sufocante de uma Manaus que parece o centro do universo.
Em "Varandas da Eva", as diferenças sociais de um grupo de amigos parecem pequenas quando todos não passam de meninos que descobrem a vida. O tempo passa e as memórias de uma juventude de aventuras livres são atropeladas pela separação (inevitável?) entre pobres e não pobres e por uma atormentadora coincidência. Hatoum faz uma leitura nostálgica do passado neste texto. Chora a passagem do tempo, capaz de dissipar "os gozos sem fim", dando espaço para que a aspereza de cada ato da vida surja "como um cacto, ou planta sem perfume".
Na outra ponta da vida, a velhice e os desejos vencidos estão lindamente apresentados em "Dois Poetas da Província". O texto aborda o encontro de Albano e Zéfiro, dois poetas, um ex-aluno do outro, ambos apaixonados por Paris. Albano se prepara para embarcar para França. Zéfiro, um poeta que nunca publicou um livro, vive em Manaus o sonho europeu, e se orgulha em desprezar o governo militar com a mesma altivez em que ignora "a cachaça, o sol da tarde e a floresta". Albano, o ex-aluno, é também uma espécie de alter ego do professor, se não por sua postura diante da poesia, certamente por sua postura diante da vida.
O olhar estrangeiro em Manaus permeia praticamente todo livro, como deve mesmo ser para quem cresce na fronteira entre o país urbanizado e a floresta, entre a modernidade e o selvagem. O estrangeiro de "A Cidade Ilhada" é atento, curioso, desconfiado com tudo que cerca o mundo real.
Em "Uma Estrangeira da Nossa Rua", a família Doherty mantém-se distante do entorno. Pai, mãe e duas lindas filhas estão isolados do país pelo muro da casa, numa discrição excessiva que os afasta das relações mais casuais. É nesse ambiente de distanciamento que o narrador percebe a presença de Lyris, a jovem sedutora porque o garoto sente "alguma coisa terrível e ansiosa parecida com a paixão". Outro olhar estrangeiro, dessa vez de um brasileiro em Berkeley, está em "Uma Carta de Bancroft". Aqui, o narrador descreve seu espanto ao encontrar uma carta fictícia de Euclides da Cunha numa biblioteca americana. No manuscrito, o escritor descreve um sonho e uma cena premonitória. Mais uma vez, Manaus aparece emaranhada. O narrador diz que a cidade o persegue, mesmo quando não é solicitada, "como se a realidade da outra América se intrometesse na espiral do devaneio para dizer que só vim a Brancoft para ler uma carta amazônica do autor d`Os sertões".
Três Jabutis
Arquiteto de formação, com passagem pela Universidade da Califórnia (assim como seu personagem), Milton Hatoum figura entre os autores brasileiros de maior prestígio. Estreou na literatura com o excelente "Relato de um Certo Oriente", livro que lhe rendeu o prêmio Jabuti em 1989. Em 2000, seu segundo romance, "Dois Irmãos", também foi considerado o livro do ano e ganhou o Jabuti, além de ter sido traduzido para oito idiomas. O autor ainda tem mais um Jabuti na estante, dessa vez por "Cinzas do Norte", de 2005.
"A Cidade Ilhada"
Autor: Milton Hatoum
Editora: Companhia das Letras
125 páginas".
(http://entretenimento.uol.com.br/ultnot/livros/resenhas/2009/03/27/ult5668u87.jhtm)
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"27/03/2009 - 06h04
Leia trecho de "A Cidade Ilhada", de Milton Hatoum
O autor Milton Hatoum coloca Manaus como ponto central de histórias contadas no livro "A Cidade Ilhada"
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"Varandas da Eva"
Varandas da Eva: o nome do lugar.
Não era longe do porto, mas naquela época a noção de distância era outra. O tempo era mais longo, demorado, ninguém falava em desperdiçar horas ou minutos. Desprezávamos a velhice, ou a ideia de envelhecer; vivíamos perdidos no tempo, as tardes nos sufocavam, lentas: tardes paradas no mormaço. Já conhecíamos a noite: festas no Fast Clube e no antigo Barés, bailes a bordo dos navios da Booth Line, serenatas para a namorada de um inimigo e brigas na madrugada, lá na calçada do bar do Sujo, na praça da Saudade. Às vezes entrávamos pelos fundos do teatro Amazonas e espiávamos atores e cantores nos camarins, exibindo-se nervosamente diante do espelho, antes da primeira cena. Mas aquele lugar, Varandas da Eva, ainda era um mistério.
Ranulfo, tio Ran, o conhecia.
É um balneário lindo, e cheio de moças lindas, dizia ele. Mas vocês precisam crescer um pouquinho, as mulheres não gostam de fedelhos. Invejávamos tio Ran, que até se enjoara de tantas noites dormidas no Varandas. A vida, para ele, dava outros sinais, descaía para outros caminhos. Enfastiado, sem graça, o queixo erguido, ele mal sorria, e lá do alto nos olhava, repetindo: Cresçam mais um pouco, cambada de fedelhos. Aí levo todos vocês ao balneário.
Minotauro, fortaço e afoito, quis ir antes. Foi barrado no portão alto, cuspiu na terra, deu meia-volta, quase marchando para trás. Era um destemido, o corpo grandalhão, e um jeito de encarar os outros com olho quente, de meter medo e intimidar. Mas a voz ainda hesitava: era aguda e grossa, de periquito rouco, e o rosto de moleque, assombrado, meio leso.
Gerinélson era mais paciente, rapaz melindroso, sabia esperar. Já namorava de dar beijos gulosos e acochos, e nos surpreendia em pleno domingo guiando uma lambreta velha, roubada do irmão. Na garupa, uma moça desconhecida, de outro bairro. Ou estrangeira. A máquina passava perto da gente, devagar, roncando, rodeando o tronco de uma árvore. Depois acelerava, sumindo na fumaceira. Ele sempre gostou de desaparecer, extraviar-se. Gerinélson era e não era da nossa turma. Eu o considerava um dos nossos. Ele, não sei. Tinha uns segredos bem guardados, era cheio de reticências: não se mostrava, o rapaz.
O Tarso era o mais triste e envergonhado: nunca disse onde morava. Desconfiávamos que o teto dele era um dos barracos perto do igarapé de Manaus; um dia se meteu por ali e sumiu. Raro sair com a gente para um arrasta-pé. Ele recusava: Com esses sapatos velhos, não dá, mano. Um cineminha, sim: duas moedas de cada um, e pagávamos o ingresso do Tarso. E lá íamos ao Éden, Guarany ou Polytheama. Depois da matinê, ele escapulia, não ficava para ver as meninas da Escola Normal, nem as endiabradas do Santa Dorothea. Tarso queria vender picolés e frutas na rua, queria ganhar um dinheirinho só para entrar no Varandas da Eva. Mas era caro, não ia dar. Então tio Ranulfo prometeu: Quando chegar a hora, pago pra todos vocês.
Tio Ran, homem de palavra, foi generoso: espichou dinheiro para a entrada e a bebida. Depois tirou um maço de cédulas da carteira. Disse: Isso é para as mulheres. E nada de molecagem. Cada um de vocês deve ser um gentleman com aquelas princesas.
Contamos as cédulas: dava e sobrava, era a nossa fortuna. Compramos na Casa Colombo um par de sapatos, e tia Mira costurou uma calça e uma camisa, tudo para o Tarso. Quando ele experimentou a roupa nova, parecia outro, ia chorar de alegria, mas Minotauro, maldoso, debochou: Deixa pra chorar depois da farra, rapaz. Quem fica feliz de roupinha nova é moça.
Eles ficaram cara a cara, os olhos com faíscas de rancor. Tia Mira se intrometeu, com súplicas de trégua e paz. Os dois olharam para minha tia, os rostos mais serenos, o pensamento talvez em outras searas.
Marcamos a noitada para uma sexta-feira de setembro. Gerinélson pegou o dinheiro, quis ir sozinho, de lambreta. Tio Ran nos levou em seu Dauphine, parou quase na porta, nos desejou boa noitada. Quando íamos entrar, Tarso hesitou: deu uns passos para a frente, recuou, quis e não quis entrar. Ficou mudo, mais e mais esquisito, fechou-se. Nós o desconhecemos: luz e dança não o atraíam? Minotauro puxou-o pela camisa, enganchou a mão no pescoço dele, repetindo: Bora lá, seu leso. Nosso amigo abaixou a cabeça, concordando, mas com um salto se desgarrou, e correu para a escuridão.
Tarso, um desmancha-prazer. Deixamos o nosso amigo. A vontade não é de cada um e em cada dia? Minotauro soltou um grunhido, resmungou: Não disse? Roupinha nova é mimo pra mocinha.
Entramos. Um caminho estreito e sinuoso conduzia ao Varandas da Eva. Aos poucos, uma sombra foi crescendo, e no fim do caminho uma luminosidade surgiu na floresta. Era uma construção redonda, de madeira e palha, desenho de oca indígena. Mesinhas na borda do círculo, um salão no meio, iluminado por lâmpadas vermelhas. Uns casais dançavam ali, a música era um bolero. Minotauro apontou uma mesinha vazia num canto mais escuro. Sentamos, pedimos cerveja, um cheiro de açucena vinha do mato. E Gerinélson, se extraviara? Na luz vermelha, quase noite, Minotauro me cutucou: uma mulher sorria para mim. Não vi mais o Minotauro, nem quis saber do Gerinélson. Só olhava para ela, que me atraía com sorrisos; depois ela me chamou com um aceno, girando o indicador, me convidando para dançar. Não era alta, mas tinha um corpo cheio e recortado, e um rostinho dos mais belos, com olhos acesos, cor de fogo, de gata maracajá. Dançamos três músicas, e dançamos mais outras, parados, apertadinhos, de corpo molhado. Ela percebeu minha ânsia, me apertou com gosto, e me levou, no ritmo lento da música, para fora do salão. Por outro caminho me conduziu a uma das casinhas vermelhas, avarandadas, na beira de um igarapé. Ficamos um tempo na varandinha, no namoro de beijos e pegações. Depois, lá dentro, ela fechou a porta, e deixou as janelas entreabertas. O som de um bolero morria na casinha avarandada.
Ela me ensinou a fazer tudo, todos os carinhos, sem pressa, com o saber de mulher que já amou e foi amada. Passamos a noite nessa festa, sem cochilo, e muitos risos, de só prazer. Fez coisas que davam ciúme, carícias que não se esquecem. Perguntei como ela se chamava. Ela disfarçou, e disse, rindo: Meu nome? Tu não vais saber, é proibido, pecado. Meu nome é só meu. Prometo.
A voz e a risada bastavam, minha curiosidade diminuía. Nome e sobrenome não são aparências?
Não quis me ver nem ser vista à luz do dia; quando as águas do igarapé ficaram mais escuras do que a noite, ela pediu que eu fosse embora. Obedeci, a contragosto. Saí no fim da madrugada, caminhando na trilha de folhas úmidas. Naquela manhã o sol teimou em aparecer no céu fechado.
Voltei ao Varandas no mesmo dia, a fim de revê-la; voltei muitas vezes, sempre sozinho, nunca mais a encontrei.
O Tarso disse que não entrou no Varandas porque teve medo.
Medo?
Ele sério, e calado.
Minotauro me contou sua farra, cheia de façanhas. A grande gandaia, noite e dia, ele disse com uma voz que não tremia mais, voz bem grossa, de cachorrão. O Gerinélson me olhou de soslaio, sorriu de fininho, desconversou. Ele não se mostrava mesmo. Gostava das coisas só para ele, guardando tudo na memória, dono sozinho de seus feitos e fracassos.
Nos meses seguintes, ainda tentei ver a mulher, pulava de um clube para outro, os lupanares de Manaus. Até hoje, sinto ânsia só de lembrar.
Tia Mira dizia que eu estava babado de amor. Estás tonto por uma mulher, ela ria, observando meu devaneio triste, meu olhar ao léu.
O Tarso não quis conversar sobre aquela noite. Foi o primeiro a se afastar da turma: teve de abandonar a escola, queria ser prático de motor, ou, quem sabe, capataz numa fazenda do Careiro.
Três anos depois, meus tios Mira e Ran mudaram de bairro; os encontros com meus amigos tornaram-se fortuitos, minha vida procurou outros rumos. O único que cruzou o meu caminho foi Minotauro; cruzou por acaso, quando eu saía do bar Mocambo e ele ia visitar um amigo no quartel da Polícia Militar. Estava fardado, era soldado S1 e se preparava para o exame de suboficial da Aeronáutica. Servia na base terrestre, de guerras na selva. Não queria voar.
Sou homem com pés no chão, ele foi logo dizendo. É emocionante a gente se perder na mata, os perigos me atraem, mano. A gente entra na floresta, escuta os ruídos da noite e a noite é escura que nem o dia. É um desafio. Toda a cambada tem que caminhar naquele ziguezague escuro, dormir sem saber onde está, matar os bichos e encontrar a saída para a sede do comando.
Falava com desembaraço, cheio de si, alisando com os dedos grossos a boina azul. O rosto continuava assombrado, quase feroz, e a risada saía que nem uivo. Ele havia topado com o Gerinélson:
O leso do Geri viajou para São Paulo. Quer ser doutor, médico de mulher. Quer se aproveitar delas, riu o Minotauro, tenebroso, mostrando dentes de cavalo. Tu nem sabes... O Geri sempre foi sonso, andou pelo Varandas antes da gente, sempre foi caído por mulheres de todas as idades.
Dei um risinho chocho, sem vontade. Minotauro já era meu ex-amigo? Está em outro mundo, nossos pensamentos não se encontram. Foi o que eu remoí naquele instante.
E o Tarso?
Mais pobre do que eu, ele disse. Deve estar caído por aí. Pobre pobre não se levanta, mano. Nem soldado o coitado do Tarso pode ser.
O Minotauro me tratou com carinho. Não sei se naquele dia eu tive pena ou raiva dele. Desprezo, talvez. Ele se despediu com um abraço forte, de estalar as costelas. Era socado, um monstro. Pôs a boina na cabeça e saiu andando, desengonçado, cumpridor de deveres.
Anos depois, num fim de tarde, eu acabara de sair de uma vara cível, e passava pela avenida Sete de Setembro. Divagava. E já não era jovem. A gente sente isso quando as complicações se somam, as respostas se esquivam das perguntas. Coisas ruins insinuavam-se, escondidas atrás da porta. As gandaias, os gozos de não ter fim, aquele arrojo dissipador, tudo vai se esvaindo. E a aspereza de cada ato da vida surge como um cacto, ou planta sem perfume. Alguém que olha para trás e toma um susto: a juventude passou.
Quando andava diante do Palácio do Governo, decidi descer a escadaria que termina próxima à margem do igarapé; parei no meio da escada e me distraí com a visão dos pássaros pousados nas plantas que flutuavam no rio cheio. Foi então que vi, numa canoa, um rosto conhecido. Era Tarso. Remou lentamente até a margem e saltou; depois tirou um cesto da canoa e pôs o fardo nas costas, a alça em volta da testa, como faz um índio. O corpo do meu amigo, curvado pelo peso, era o de um homem. Subiu uma escadinha de madeira, deixou o cesto na porta de uma palafita, voltou à margem e puxou a canoa até a areia enlameada. À porta apareceu uma mulher para apanhar o cesto. Reapareceu em seguida e acenou para Tarso. Num relance, ela ergueu a cabeça e me encontrou. Estremeci. Eu ia virar o rosto, mas não pude deixar de encará-la. Ela me atraía, e a lembrança surgiu agitada, confusa. A voz dela chamou: Meu filho! A mesma voz, meiga e firme, da moça, da mulher da casinha vermelha, no balneário Varandas da Eva. Era a mãe do meu amigo? Isso durou uns segundos. Por assombro, ou magia, o rosto dela era o mesmo, não envelhecera. Mal tive tempo de ver os braços e as pernas, a memória foi abrindo brechas, compondo o corpo inteiro daquela noite.
Tarso escondeu a canoa entre os pilares da palafita, e entrou pela escadinha dos fundos. A mulher já tinha sumido.
Permaneci ali mais um pouco, relembrando...
Nunca mais voltei àquele lugar". (MILTON HATOUM)
(http://entretenimento.uol.com.br/ultnot/livros/trechos/2009/03/27/ult5747u53.jhtm)