Marte ou mártir?
Por Gabriel Perissé Em: 01/03/2005, às 21H00
Diante de uma ameaça de morte, serei Marte ou mártir?
Ser Marte é ser filho da guerra, vestir armadura de bronze, tomar lança e escudo, convocar exércitos. O deus Ares, sua versão original, tem a ver com “aré”, palavra grega que significa “desgraça”. E desgraçados são aqueles que se lançam à guerra. Gritos, sangue, feridas incuráveis. Na guerra como na guerra. Golpes altos e baixos. O inimigo declarado declara guerra a si mesmo!
Curiosamente, Marte era amante de Vênus, a deusa do amor, e com ela teve três filhos cujos nomes gregos são Fobos, Deimos e Harmonia. Os dois primeiros, Medo e Terror, são conseqüência masculina e não podem faltar aos combates. Harmonia, a filha, indica que um acordo terá de ser feito. Depois de extenuados e destruídos por si mesmos, os adversários são obrigados a assinar um tratado de não-agressão...
As armas da Harmonia são o amor e o ódio que, juntos, produzem uma complexa solução, sempre insatisfatória, sempre contraditória, sempre provisória.
Por isso o espírito cristão inventou o martírio. Ser mártir é vencer o mal com o olhar pacífico, palavras firmes, docilidade heróica. Difícil ser mártir, encarar e abraçar a morte corajosamente. A expressão popular simplifica ao máximo: “não quero que me peguem pra cristo!”.
O mártir, guerreiro sofisticado. Sua morte constitui a melhor munição. O poder injusto sabe que o mártir é mais nocivo do que o rebelde. Todos os mártires lideram revoluções. O sangue dos cristãos sacrificados há 20 séculos continua a dar dignidade aos nem sempre dignos cristãos que os sucederam. Cristãos não-cristãos “produziram” outros mártires e colocaram em xeque o próprio cristianismo...
A rigor, o mártir sequer precisa derramar uma gota de sangue. Seu testemunho abala as estruturas da intolerância, derruba os muros da arrogância. O mártir denuncia a honestidade perdida, a coerência perdida, a consciência vendida.
Silenciosamente, água infiltrante, o mártir promove implosões. Quem o vê, vê o contraste, e é obrigado a optar. Divisor de águas, o mártir imortal vira dilúvio, afoga quem não encontra a arca de Noé.
Marte ou mártir? Qual dos dois é mais perigoso? Morto, Marte sempre ressuscita. Morto, o mártir não morre, pois sua vida consiste em dar credibilidade àquilo em que, pelo menos da boca para fora, todos acreditam.
Gabriel Perissé é coordenador pedagógico do Ipep (Instituto Paulista de Ensino e Pesquisa) e autor do livro recém-lançado A arte de ensinar, pela Editora Montiei.