Ironia e metalinguagem na poesia metafísica de Lucas Villa

[Dílson Lages Monteiro – professor e webjornalista]

Até que ponto, podemos crer em dom?

A pergunta parece matéria vencida. Surge, porém, com muita regularidade quando nos deparamos com a força arrebatadora de textos ditos de maneira tão pessoal, mas tão pessoal, que parecem nascidos da espontaneidade de um pensamento iluminado.

A tradição de nossas letras tratou de desmitificar a aura de que o texto é matéria pronta. Descreveu processos cognitivos. Explorou recursos de criação. Dissecou formas de dizer. Especulou sobre o lugar do leitor. Pôs na balança o assunto como mercadoria. Desfez-se a visão romântica sobre o ato de escrever; entrou em cena o olhar que lembra a sociedade do capital: escrever como trabalho.

Muitos tentaram, como escape para a discussão, associá-la a práticas esportivas. Como se a palavra funcionasse como bola, raquete, taco. Ou o simples e continuado pedalar de uma bicicleta. Se isso bastasse, estaríamos com as casas cheias de notáveis publicadores de livros de literatura de alta voltagem. A literatura, mesmo experienciada como disciplina de trabalho, sempre colocará no pedestal, em maior ou menor grau, o talento, a espontaneidade, o dom. Porque no fundo, no fundo, a linguagem expressiva, como assombro do dizer único, é a tradução mais subjetiva da condição humana, a forma artística mais capaz de reviver em nós a experiência de muitas vidas.

Por isso, os escritores são unânimes em afirmar, como o faz Carolla Saavedra, que

“a escrita (...) é uma forma de estar no mundo, uma forma de olhar às pessoas, para as coisas à volta, e até para si mesma. (...) Uma tentativa constante de transformar a banalidade em algo belo, sedutor, e, por último, é uma forma de dar sentido, mesmo que efêmero, àquilo que não tem sentido algum” (2010: 144).

Como afastar, portanto, a escritura, sob essa condição, do talento, da vocação, do dom, da espontaneidade? Nelson de Oliveira, experiente literato e professor de escrita criativa, referenda essa concepção ao afirmar que a escrita “É uma necessidade fisiológica, como dormir, respirar, comer. Ela dá sentido à vida, organiza as coisas, afasta o pessimismo existencial” (2010: 216).

Ainda que o capital e o estudo aprofundado dos mecanismos e estruturas das formas textuais tenham dessacralizado a escritura como dom, esse jeito de concebê-la será sempre um gatilho para o despontar dos gênios. Ninguém duvida que a repetição prolongada, e ao extremo do limite, está na base dos cérebros geniais. Alguém duvidaria, também, que o talento seja a matriz primeira das grandes criações em todos os campos da atividade humana?

Para fincar o raciocínio no aqui e no agora, ancoro-o também na segunda metade da década de 1990. Ali, na Rua São João, 1354, na escola situada entre a 7 de setembro e a David Caldas, onde construíra sua formação escolar, sob o comando iluminado de Tércia Moraes do Rêgo Leal, há mais de cinco décadas à frente da entidade, um jovem franzino “assombrava” os professores das séries finais do Ensino Médio com uma habilidade com a linguagem poucas vezes vistas. (Registramos: com os olhos do distanciamento, em 33 anos de docência na educação básica, foi a turma mais “bem-acabada” que conhecemos – todos profissionais de sucesso nos caminhos que escolheram). Voltando ao jovem referido, ele não apenas dominava a construção de sentido de textos escolarizados, mas também escrevia literatura. Já era um escritor, de fato.

Algum professor, certamente, motivado pelo encanto da admiração, deve ter-se afirmado: “Algum dia, escreverei também assim”. O Adolescente já detinha uma habilidade primorosa para escrever sonetos como se o fosse poeta de larga experiência. Tanto que logo publicaria sua primeira obra poética com poemas que dão satisfação ler. Para além disso, era devorador de livros exigentes. A filosofia já estava também entre as companhias prediletas. Esse adolescente fez-se filósofo, professor universitário e advogado de sucesso. Está aqui e agora entre nós e responde pelo nome de Lucas Nogueira do Rego Monteiro Villa Lages, ou simplesmente, Lucas Villa. O dom, a vocação e o talento existem: estão aqui sobre a forma humana, no abstracionismo de um cérebro, na energia das percepções e nos versos de Anamorphosis.

Pois bem.

Estamos diante de uma obra que transforma o grotesco, o instintivo, o animalesco, em beleza, em beleza poética, uma atividade bastante exigente.

Anamorphosis, de Lucas Vila, agrupa um conjunto de 54 poemas que trazem a metafísica como suporte para os processos mentais-perceptivos delineadores do ritmo e das imagens poéticas que cria. Procura o poeta questionar, principalmente, em elementos da natureza, às vezes na mitologia, e em representações conceituais do mundo do pensar, formulando no leitor dúvidas (ou seriam certezas?):

“Tu vais colhendo

certas palavras

Em certos lugares

E pondo tudo em um lugar

                                                                          Certo.

(AURORA, in Anamorphosis, Lucas Villa, pág. 36)

É poesia, portanto, nascida do diálogo com a filosofia, ou seja, vasculha, como tema primário, a condição existencial. Pouco importa o reverso do espaço geográfico, dos problemas sociais em sua estrutura discursiva-ideológica, dos grandes temas da história etc. Sua escritura está acima das aflições mais imediatas. Como se trata de obra poemática, não busca o conceito, mas, como o faz Ferreira Gullar, “busca usar o conceito para transformá-lo numa experiência real de vida”. Afinal todo vate que assim o procede, conforme acertadamente lembra o próprio Gullar,

“(...) como todo ser humano, pensa na existência natural e quer dar uma resposta. Enquanto o filósofo quer dar uma resposta conceituando, abstraindo e criando categorias universais para expressar isso, o poeta não quer. Quer que o pensamento seja tão concreto que ele próprio seja a existência” (1990: 75)

 

Tomemos o título como ponto de partida para a especulação sobre o projeto literário de Villa. Esse projeto se anuncia resumitivamente no neologismo irônico-hermético estampado na capa, porque dialoga com palavra em escrita do passado, para anunciar a transformação da voz poética: a tradição que se reinventa. Anamorphosis, para além de uma homenagem à sua genitora (“amor por Ana”), funciona também para conotar a metamorfose de um poeta que se descobre em novas formas. Anamorphosis, como outros neologismos lúdicos, vai espontaneamente metaforizando o próprio pensamento.

Com este Anamorphosis, Lucas Vila afirma-se com uma voz de ruptura tanto em relação à sua obra, quanto à tendência da poesia metafísica preponderante em curso, de tendência, sobretudo, estreitamente ligada ou à memória, ou à meta-poesia, ou à influência surrealista. O poeta iniciou-se na literatura, sob os estímulos da interlocução, em sua forma de escrever, com Augusto dos Anjos e Baudelaire, além de refletir em muitos de seus poemas iniciais o niilismo nithiano, tema bastante recorrente em sua produção inicial e com reflexos, ainda, em vigor nos poemas de hoje.

O decadentismo de seus versos dos anos transcorridos é, agora, abandonado para dar lugar a uma voz muito particular: metáforas que são sinapses. Metaforizam, do ponto de vista temático, o movimento, seja físico, seja psíquico. Movimento-pensamento, em poesia discursiva e, ao mesmo tempo, imagética; poesia na qual os signos se completam no apelo à imagem irônica. Um processo estendido ao plano da forma, curiosamente, fundindo a subversão da dimensão enunciativa à da plasticidade da sintaxe, que ressignifica experiências concretistas. Para sermos mais claros: Villa fragmenta, em considerável número de poemas, não o ritmo da sonoridade, mas o ritmo da leitura. Uma evidente estratégia de inserir o leitor no centro do poema. Assim, favorecer a contemplação e o pensamento, como em

                                                                   a vida

                                                               que surge

                                                          supérflua

                                                                                      perturba

                                                          a tranquilidade do nada.

                                   

                (FENÔMENO SUPERVALORIZADO, in Anamorphosis, Lucas Villa, pág. 48)

 

Brinca o poeta com a disposição gráfica das palavras. Elas se organizam para conotar um movimento que, por ironia, leva  ao banal, ao vazio, à lentidão, inclusive com o 2º e 3º. versos simbolizando retrocesso, com recuo à margem esquerda da folha, quebrado paradoxalmente, pelo verbo perturbar. Abrindo espaço, por fim, para nova antinomia que leva o leitor a refletir sobre o tédio existencial no mundo contemporâneo.

Toda a sua poesia é uma negação do óbvio e da permanência do que julgamos concreto, para metamorfosear aquilo que aos sentidos se converte em palavra. A metalinguagem cumpre semelhante função: ver o averso do sentido e dos conceitos, pela exploração recorrente de ironias sutis. A serviço de tudo isso está o poema “Não era eu sentado na pedra”, que explora o tema universal da efemeridade do tempo e das coisas, bastante recorrente na tradição poética, de Camões à contemporaneidade:

“Nesta mesma pedra sentou um dia alguém

e olhou este mesmo mar

e roçou-lhe a pele este mesmo vento.

Ouviu, como eu, as ondas e as aves,

as viu planar na água azul do céu

e na espuma das nuvens.

As alvas aves e os murmúrios do tempo, ouviu esse alguém.

e sim, roçou-lhe a pele ardida este mesmo vento

que ora penetra o casco da tartaruga, com carícia e cócega,

e lambe a folha no galho, até fazê-la cair.

E era também um deus, aquele vento amigo,

pois fez a mesma areia mordiscar também seus calcanhares.

(...)

               

              (NÃO ERA EU, SENTADO NA PEDRA, in Anamorphosis, Lucas Villa, pág. 76)

 

O poeta busca, com a subversão do tempo e do lugar físico, suprimir a realidade, para que as sensações da imaginação predominem sobre os estados da alma. Fazendo-o, nasce, assim, a condição de pensar. A voz lírica nega o eu ou sua configuração de real, mas não o nega, o eu, por extensão o mundo, em sua aparência sensorial.

O poema, por completo, vai constituindo-se em um silogismo, em tom de conversa e reflexão, para explorar a dicotomia entre o instante x o eterno, ressaltando a impermanência das coisas, “porque tudo escorre”, conforme escreve o poeta.

A poesia de Lucas Villa convida o leitor a resistir à reificação. Nisto, cumpre o papel  grandioso de toda palavra poética verdadeira: estimular o exercício dos sentidos.

Sempre valerá à pena ler (e reler) livros como ANAMORPHOSIS.

Por isso, só podemos ler poemas como “Advertência” como uma provocação, uma grande ironia ao sentido da palavra poética:

Esta coisa é um bestiário

                                                                           Te dirão

E estarão certos

Esta coisa ninguém lê

                                                                          Te dirão

E estarão certos

Esta coisa não vende

                              Não traz clientes                 não dá dinheiro

                                                                                          Te dirão

E novamente estarão certos

Esta coisa não conta para a capes                               para o cnpq

                         Nem para os índices de produtividade acadêmica

                                                      Igualmente te dirão

E igualmente te estarão certos.

Tens certeza de que queres publicar um livro de poesia?

 

(ADVERTÊNCIA, in Anamorphosis, Lucas Villa, pág. 76)

 

Parabéns, Dr. Lucas Vila! Sua poesia é de apreciável valor estético. Poesia de alta voltagem!

 

Referências:

FERREIRA, José Ribamar. In: Poesia é emoção e vida. PESTANA, André.O que pensam. Rio de Janeiro: Tagore,1990.

LAGES. Lucas N. do R. Monteiro Villa. Anamorphosis. Teresina: Nova Aliança, 2023.

OLIVEIRA, Nelson de. In: Nelson de Oliveira. DORF, Mona. Autores e Ideias. São Paulo: Saraiva, 2020.

SAAVEDRA, Carolla. In: Carolla Saavedra. DORF, Mona. Autores e Ideias. São Paulo: Saraiva, 2020.

 

 

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