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O Piauí é mesmo terra surpreendente, e a descoberta, por meio de relatos ouvidos, da existência de uma casa-forte abandonada, construída em pedra num lugar de acesso difícil e época desconhecida, já foi o suficiente para me instigar a pegar, certa feita, uma estrada não muito longe de Piracuruca.

Aos sacolejos de uma velha Toyota, facão à mão e um integrante da brigada de incêndio de um Parque Nacional como cicerone, cruzei estradas de terra vermelha, passei a cancela que guarda a cachoeira e me deparei com uma espécie de caramanchão na margem de um riacho.

Ultrapassando o obstáculo e tantos outros a surgir pelo caminho, como uma grade de ferro da qual se havia esquecido (assim como a chave de seu cadeado), prosseguimos pela mata fechada em meio a uma e outra clareira até abandonarmos o veículo para seguirmos o resto da trilha, a pé. O silêncio era profundo, aqui e ali vestígios de animais selvagens, como a pegada de uma onça (assegurava o guia), num riacho que vinha de secar.

No caminho, os viajantes mais se assemelhavam a uma cena dentro do Memorial de Maria Moura, da Rachel de Queiroz, andarilhos em busca da casa-forte da Serra dos Padres, impressão a se acentuar ainda mais quando o cicerone quebrava o silêncio da mata com histórias sinistras de fatos ali ocorridos, como o caso do rapaz que foi levado até o local exatamente para ser assassinado.

Mais alguns quilômetros adiante, avistamos enfim os largos telhados da construção abandonada, quase inteiramente tomada pela vegetação. É deveras estranho uma casa como essa ter sido construída num lugar tão ermo. O nome do lugar, a propósito, veio a si por ironia: Fazenda Bom Gosto. De acordo com o integrante da brigada de incêndio, o nome foi dado pelos antigos habitantes da região, os quais diziam que as pessoas só poderiam ter um gosto muito excêntrico para viver ali.

Depois de ter acesso ao alpendre, com degraus e piso de pedra, descobre-se que a casa é toda construída em torno de uma ala central (com espaço para um oratório) de onde se dividem os compartimentos, todos com vários espaços abertos na parede, formando pequenos armários. Nem todos os cômodos possuem janelas. No quintal, as paredes são enegrecidas e há um compartimento baixo, paredes pela metade. Ao lado dos quartos da ala direita, uma outra ala se abre, e essa também é acessível do alpendre baixo da entrada principal.

Pergunto-me quem viveu ali, indago a respeito da época da construção, da qual nunca ouvi falar em livro algum. Talvez um pouso de tropeiros, tangedores de gado? E de onde vinha aquela opulência? Se alguém souber, que me diga, mas me conte também de onde vem o gosto por um isolamento sobrenatural como aquele...

E me garanta que o curral de pedras não tenha servido como criadouro de onças às quais se jogavam os inimigos do proprietário, conforme a lenda de uma outra fazenda abandonada como aquela, igualmente incógnita nestes sertões do Piauí.

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Trecho retirado do livro "Geografia Afetiva" - Prêmio Milton Dias, 2011.
Outras obras do autor estão disponíveis neste link (Livraria Saraiva).