Para Sueli ¡Mire la lluvia!, ¡Mire la lluvia!, a voz trêmula abafada pelos motores dos

carros, pelo alarido dos transeuntes, um pinheiro caminha apressado em direção a um

ônibus, suor escorrendo no rosto, ¡Mire la lluvia!, ¡Mire la lluvia!, a mão esquerda

esgrime um enorme guarda-chuva preto, Made in China, outros espalhados sobre a banca,

resguardada do sol do início de tarde pela marquise de uma loja de discos, ¡Señora!,

¡Señora!, ¡Mire!, ¡Mire! Dezembro espreguiça-se nos parabrisas dos irritados automóveis

parados no semáforo, bufam buzinas aceleradas, nuvens carregadas ameaçam as luzinhas

que enfeitiçam a véspera de Natal. A indinha - sem sutiã, os pequenos peitos furam a

malha fina; negros, os cabelos alastram-se pelo púbis, pelos sovacos, pelas pernas - às

vezes incomodava-se com a algazarra, sentia-se sufocada pela gasolina queimada,

humilhada com os olhares opacos que a tornavam invisível, com a sua falta de sorte,

¡Basta de konanearme! Pensava até em abandonar aquele tabuleiro mambembe, perder

os pés pela cidade, observar a decoração das vitrinas, toda aquela gente esbaforida, estos

non son mujeres, ni hombres, sino animales, ¡animales!, ¿comprendes?, ¡Mire!, ¡Mire!, o

corpo se contrai com as lembranças recentes, catorze, dezesseis horas tocando uma

máquina-de-costura industrial nos fundos de um galpão no Bom Retiro, pernas

anestesiadas, cabeça leve, prestes a desmaiar, como no soroche, a coreana andando de lá

para cá bate palmas, ameaça, grita, Pálí!, Pálí!, não entendia uma palavra, mas conhecia

de cor aquela expressão de ódio que se nutre por quem se despreza, ¡sí!, ¡animales!,

silêncio, nada de olhares vizinhos, nada de cicios, ¡Nada!, berram os ponguitos

amontoados pelos cantos, envolvidos em ponchos e retalhos. Sem os documentos, retidos

pelo patrão, ¡Quisiri!, seguiu o rapaz, boa-praça que conhecera comprando camisas para

revender no centro da cidade, as araras abarrotando a kombi amarela, ele falou em

serviço decente, e insinuou, quem sabe, mais para a frente, se tudo der certo, poderia, por

que não?, mas, primeiro, o estoque de guarda-chuvas, que adquirira apostando nas águas

de verão, e, diacho!, atrasavam-se, há quatro dias a liberdade das ruas, uma única peça

negociada, a velhinha, olhos azuis, por simpatia, ou pena, levara el paraguas, tentou puxar

assunto, agradecida, mas entendia tão mal... ¡Senõr!, ¡Mire!, ¡señor! Então, gotas

espelhadas coloriram o asfalto quente, e dispersados, buscando refúgio, um terno-e-

gravata aproximou-se e, sem discutir o preço, carregou um guarda-chuva, e uma moça

tailleur claro sapatos salto alto, e uma barba ruiva, e duas garotas piercing-e-tatuagem,

suas mãos encheram-se de notas, novas e amarrotadas, quebradiças e rasgadas, seu

corpo andino abriu-se num sorriso largo, sua pele de bronze arrepiou-se na umidade,

vontade de molhar a cabeça na água fria que desabava do céu de chumbo, Waca..., e

então, ao voltar-se para o lado direito, percebeu, de cócoras, quase sob a bancada

semivazia, um papai-noel, a roupa vermelha respingada, almoçando uma quentinha,

pensamentos sobrenadando a enxurrada empoçada na boca-de-lobo entupida. Que

chuva!, disse, Que chuva!, repetiu. Ah, se chovesse assim na minha terra... Se

chovesse... Os dentes branquíssimos sorveram o vento, Mi tierra... Mi tierra es nada,

ahora, falou, mastigando as curtíssimas unhas pretas. O homem, envergonhado por não

compreender, levantou-se, com dificuldade, e entrou no McDonald's. Ao retornar, após

jogar a embalagem de alumínio no lixo e usar o banheiro para urinar e lavar a boca, a

chuva havia cessado. Pôs o gorro, a placa Os melhores preços de importados da praça!

Confira! abraçou-o, estacionado junto à faixa de pedestres. Antes de atravessar, buscou a

moça e, simpático, Feliz Natal pra você, menina, feliz Natal! Ela, que arrumava os

guarda-chuvas restantes, parou, acenou desajeitada e por um momento acompanhou,

estática, o homem gordo perder-se capengando em meio à multidão nervosa. Suspirou.

¡Mire la lluvia!, ¡señora!, ¡mire la lluvia!