GOSTO NÃO SE DISCUTE? DISCUTE-SE, SIM.
Por Cunha e Silva Filho Em: 02/10/2021, às 18H32
SESSÃO NOSTALGIA
GOSTO NÃO SE DISCUTE? DISCUTE-SE, SIM
CUNHA E SILVA FILHO
Leitor, não vou, é óbvio, mencionar conversas íntimas sobre o que me dizem acerca de autores, nacionais ou estrangeiros. Principalmente, hoje, um domingo de sol ameno que dá vontade de sair de casa a esmo até procurar, em vão, encontrar aquilo que chamam de felicidade na terra.
Já vi muita gente culta que acha chato até Machado de Assis. Encontra erros em passagens de grandes autores europeus, por exemplo, Honoré de Balsac, e além disso, não gosta de poesia moderna. Prefere os românticos, os parnasianos, os clássicos antigos, latinos ou gregos. Enquanto outros me dizem que Paulo Coelho tem algum mérito. Fico confuso, embaraçado e nem me dou ao trabalho de lhes fazer um censura e mostrar-lhes que estão errados e que nada entendem da grande literatura.
Uma vez, uma colega, estudante de mestrado, me confessou que já estava cansada de analisar Carlos Drummond de Andrade. “Chega de Drummond” – resmungou ela. Outros ainda reclamam de um escritor porque, segundo eles, só escrevem cenas indecentes, coprológicas. Outros há que detestam um autor por motivos religiosos. De James Joyce dizem que nada entendem. Atacam Tolstói, Gorki, Dostoiévski por uma ou outra razão. Outros tampouco gostam de Casanova, de André Villon, de Rabelais. Mas é difícil falarem mal de Cervantes, de Shakespeare. Também seria demais. Enfatizo, leitor, que estou aqui falando de opiniões subjetivas de escritores e de intelectuais.
Um professor universitário desdenhou do grande contista João Antônio e soltou essa bobagem: “Por que não escolheu um tema de Machado de Assis? Ele, sim, é escritor.” Esse professor era o mesmo que nunca leu Graça Aranha e seguramente não iria ler. O motivo? Não sei.
Como vê, leitor, gosto, a princípio, não se discute em matéria de tudo, inclusive de literatura. Assim, se fica sabendo de que, em conversas informais, não faltam subjetividades, grosserias dirigidas a uma grande autor e a uma grande obra. De uma tacada só, lá se vai a reputação de um escritor famoso, cuja avaliação, movida pela irracionalidade, mera ignorância ou soberba, pretende (não o conseguirá jamais) destruir um gigante da literatura universal. Desprestigiar um autor é fácil e é covardia, particularmente quando já é falecido.
O pior ainda é que falam até mal de escritores que nunca leram! É verdade. Nunca leram nem lerão. E não falo de leitor comum, mas de leitor letrado, especializado em literatura.
Digo e repito incansavelmente que a literatura, por ser arte maior, é coisa séria, que merece respeito e não algo que, subjetivamente, imbecilmente, se possa discutir ferindo injustamente nomes de méritos da produção literária em todos os gêneros.
Eis por que se deve ser cauteloso e prudente quando expressamos alguma ideia envolvendo juízos críticos apressados ou sem embasamento sólido no que tange ao valor maior ou menor de um escritor.
De improvisação não se faz crítica nem se produz uma obra literária, uma vez que toda obra de arte pressupõe um conhecimento prévio que se situaria no que se denomina tradição literária, na formação dos grandes cânones do Ocidente ou mesmo do Oriente – base e até, de certo modo, inspiração responsável por aquele princípio formulado por Harold Bloom, que é “a angústia da influência,” angústia sofrida por um poeta novo em relação a um poeta predecessor.
Imaginar um escritor, poeta ou ficcionista que não se tenha mais nada a escrever em literatura é doloroso, sim, mas é também fator, segundo Bloom, de renovação, ou como ele afirma, sem esse voluntário "revisionismo,” “desleituras,” “desaprisionamentos,” reação "deliberada" e “perversa,” “distorcida,” de “caricatura de auto-salvação” não se teria o surgimento da poesia moderna (apud GRAY, Martin, Dictionary of literary terms. London: Longmans York Press, 2nd revised edition, third impression, 1994, p.28).
Por conseguinte, deve-se pensar, pelo menos, duas vezes antes de se julgar aleatoriamente um autor, uma obra. E a advertência serve para nós todos que lidamos com o fenômeno literário e com estudos literários. Não ser leviano e ligeiro nos julgamentos inconsistentes de obras alheias é um desserviço palmar que se comete com o criador e a criação literária.
Ao contrário, deve-se ter, como em qualquer campo de estudos, uma espécie de “educação para a literatura,” i.e., ser elemento agregador, responsável, ético e não se esquecendo de que até pelos escritores que, em língua inglesa, são chamados de minor writers, devemos ter nosso apreço.
Já disse alguém que a literatura não se constrói apenas de gênios, mas de pequenos e medianos autores, e é essa mediania que consegue levar adiante a permanência, no presente e no futuro, da história literária de qualquer país.
E, finalmente, ainda tenho algo a considerar. Por razões ideológicos ou políticas, autores há que descartam algumas obras por elas não se afinarem com a sua posição religiosa ou filosófica ou porque não são obras edificantes. Recordo-me de uma artigo de Tristão de Athayde que ponderava que a literatura não é moral, nem imoral, mas amoral. A obra literária, assim como as artes em geral, não têm compromisso com a realidade empírica. Ela é construção da imaginação, da linguagem, de um estilo, de um objeto criado pelo artista livre e esteticamente concebido, de um mundo possível, não um arremedo da vida em si.
O que um personagem, num romance, por exemplo, declara pensa ou faz não deve se confundir com uma pessoa de carne e osso. Ele é uma construção discursiva da linguagem com o seu mundo próprio, específico, sua autonomia estética, autotélica, um mundo à parte.
Patrulhar as concepções de um personagem não passa de uma perspectiva distorcida e ignorante do leitor e das instituições sociais. Vários escritores, no pais e no exterior, foram injustamente processados pela Justiça porque se confundiu e ainda se confunde muitas vezes persona, personagem inventado, ser fictício, “criação de papel,” com indivíduos da sociedade que se viram retratados ou criticados no imaginário de uma obra literária.Nada tão longe da verdade.
O.