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            Miguel Carqueija

 

            “A Rainha da Neve” é originalmente um conto de fadas do dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875), existindo uma versão de Alexandre Dumas. Este “originalmente” é relativo, pois os fabulistas costumam utilizar tradições orais do folclore, como o faziam os Irmãos Grimm e Perrault, e criaturas mágicas com poder sobre o frio aparecem até no folclore japonês, além do russo, terra extremamente fria.

            Nas “Crônicas de Nárnia” de C.S. Lewis surge a sinistra Feiticeira Branca, que parece uma versão da Rainha da Neve: uma entidade maligna que controla o frio, o gelo e a neve.

            O conto de Andersen ganhou uma magistral adaptação do cinema soviético em 1957, de certo l. Atanamov, desenho longo raro e encantador, que pude assistir há muitos anos, numa sessão especial no Rio de Janeiro.

            A personagem comparece também num mangá de Naoko Takeushi, da franquia Sailor Moon; o mesmo baseou uma animação japonesa de longa-metragem, “Corações em gelo” onde a Princesa da Lua (Sailor Moon), símbolo da pureza e do amor, confronta a Rainha da Neve, que simboliza a dureza de coração, a falta de compaixão e sensibilidade.

            Entretanto, sabemos hoje que desde 1937 o genial Walt Disney pretendia adaptar a história de Andersen; como muitos outros projetos de Disney, este não pôde ser realizado e ficou hibernando por décadas. Finalmente, o produtor John Lasseter — o mesmo da série de Tinkerbell — finalizou o plano original de Walt Disney. Claro, o resultado final não podia ser previsto por Walt: a transformação da personalidade da Rainha da Neve, título que nem sequer é mencionado em “Frozen” a não ser no crédito para Hans Christian Andersen.

            De fato, no original não existe parentesco entre a heroína Gerda, que realiza uma imensa jornada ao misterioso e gélido Norte, e a entidade maléfica. Em “Frozen” foi alterado o argumento, de modo que temos agora duas princesas do fictício reino de Arendelle; a mais velha, Elsa, possui o misterioso poder de materializar gelo e neve; os reis não sabem a origem do poder e nem como controlá-lo. Um acidente precipita os acontecimentos: sem querer Elsa atinge Anna com um golpe de gelo, a caçula cai desfalecida e só se recupera com a ajuda dos trolls que habitam um vale.

            Resolvidos a preservar as filhas e manter segredo sobre os poderes, os reis tomam estranhas medidas: isolam as primcesas do mundo dentro do castelo, e uma da outra. A mais nova tem sua memória obliterada, de modo a esquecer que a outra tem poderes (de origem jamais explicada). A rigor, medidas cruéis e descabidas. Isso não impede que, ao completar 18 anos e ser coroada, Elsa acabe revelando seus poderes e diante do pânico geral, foge do palácio e, bem longe, constrói um refúgio gelado onde pretenderá viver sozinha.

            Lasseter e sua equipe possuem muito talento, mas parece que o concentraram na graciosa série Tinkerbell. “Frozen” é uma fita de grande beleza visual e cuja história prende atenção e encanta pela exaltação do amor fraterno; mas o argumento possui muitas falhas e soluções questionáveis, detalhes mal explicados.

            Um desses detalhes é a morte misteriosa dos pais das irmãs, numa viagem igualmente não explicada. Quem tomava conta das princesas em sua ausência ou após sua morte? Só depois é que o Príncipe Hans, que inicia um namoro com Anna, fica como regente do reino enquanto as duas irmãs se ausentam. A fuga de Elsa, a pé e com a roupa do corpo, também causa estranheza. Ela vai tão longe que a outra tem de segui-la a cavalo e depois com a ajuda de Kristoff e sua rena. Com seus poderes Elsa constrói o castelo de gelo, como foi dito; nada é esclarecido sobre o que ela iria comer, onde se deitaria, e que roupas teria para trocar. Ou já se tornara uma entidade que não precisava mais se alimentar, nem trocar de roupa?

            Em resumo, ao alterar a personalidade e origem da Rainha da Neve, que deixa de ser uma espécie de demônio e passa a ser apenas uma vítima do destino, os roteiristas de “Frozen” trouxeram uma variante sagaz que possibilitou uma nova riqueza à personagem. Os pontos fracos da história poderiam ter sido melhor trabalhados mas, por outro lado, é inegável que as crianças e adolescentes (público-alvo principal) não costumam perceber ou questionar essas inconsistências (nunca vi alguém questionar que a Rainha Má de “Branca de Neve e os sete anões” vivesse aparentemente sozinha no imenso castelo, sem servidores e soldados).

 

FROZEN (EUA, 2013) – Walt Disney Animation Studios. Projeto original de Walt Disney (1937). Produção executiva: John Lasseter. Produção: Peter Del Vecho. Roteiro: Jennifer Lee. Adaptação do conto de fadas “A Rainha da Neve”, de Hans Christian Andersen. Trilha sonora: Christopher Beck. Tema de abertura (“Vuelie”): Frode Fjellheim. Canções: Robert Lopez e Kristen Anderson-Lopez.

Elenco de dublagem:

Princesa Anna............................................Kristen Bell

Princesa Elsa (Rainha da Neve).................Idina Menzel

Kristoff......................................................Jonathan Groff

Príncipe Hans............................................Santino Fontana

Olaf...........................................................Josh Gad

Duque de Weselton.................................Alan Tudyk

Bulda........................................................Maia Wilson

Oaken......................................................Chris Williams

Rei de Arandelle......................................Maurice La Marche

Rainha de Arandelle................................Jennifer Lee (roteirista)