FAUSTO WOLFF: JORNALISMO E CORAGEM (13)
Por Cunha e Silva Filho Em: 19/09/2021, às 12H08
FASUTO WOLFF: JORNALISMO E CORAGEM (13)
Pessoas há a quem admiramos morando anos e anos na mesma cidade que nós sem que jamais chegamos a conhecer pessoalmente. Acredito que, caso haja outra vida, essa lacuna do conhecimento que não chegamos a travar com alguém, há de ser preenchida.
Essas pessoas que caem na nossa simpatia provavelmente fazem e farão muita falta na continuidade de nossa passagem pela Terra visto que, entre elas e nós, existem pontos comuns de identificação de visões da vida, de certa comunhão de ideias e de posições morais que, na distância, quer física, quer metafísica nos aproximam. Talvez seja isso o que aconteça com as nossas preferências por certos ídolos, certos ícones em todas as manifestações culturais.
Nunca vi pessoalmente Fausto Wolff que se tornou, lamentavelmente, assunto desta crônica. Digo “lamentavelmente’ porque ontem, faleceu esse notável jornalista, o qual por tantas vezes me empolgou pela grandeza e coragem de suas crônicas sobre temas da vida política e social brasileira, publicadas na coluna do Caderno B do Jornal do Brasil a partir das mudanças gráficas para o novo formato que, a princípio, reprovei, uma vez que o queria sempre no formato tradicional com maior número de páginas. O novo formato me parecia mais um tabloide, dando a impressão de jornalzinho de segunda qualidade.
Wolff escrevia sua coluna diariamente, mas eu só a lia aos sábados. Bastava, contudo, uma vez por semana para que pudesse avaliar-lhe a capacidade e o talento de jornalista.
Fausto Wolff, cuja grafia original do nome é Faustus von Wolffbüttel, lembra um nome aristocrático, nasceu em 1940 em Santo Ângelo, Rio Grande do Sul. Era de família pobre. Já aos 14 anos trabalhava como repórter policial e contínuo do jornal Diário de Porto Alegre, conforme me informa a nota obituária do JB. Veio para o Rio de Janeiro aos 18 anos. Como vemos, sua morte foi relativamente prematura. Ainda tinha muito a produzir intelectualmente.
O grande jornalista, grande também fisicamente, não resistiu a uma hemorragia intestinal. Entrara em coma e com um quadro agravado pela insuficiência respiratória.
Jornalista, tradutor, contista, romancista, professor de literatura por algum tempo em Copenhague e Nápoles, falando e escrevendo em mais de uma língua, foi, além disso, sobretudo jornalista dos melhores que o país já conheceu, principalmente se levarmos em conta um tipo de jornalismo que sua pena utilizou: o de opinião, mas de opinião expressa em linguagem original, dessa em que o leitor sentia, borbulhante, o relato de um fato ou de um acontecimento transmitidos com alusões ricas de conhecimentos e mesmo de erudição. Tudo, porém, de forma comedida, na dose certa.
O Brasil, principalmente no governo Lula, sentiu na carne o corte ferino, cáustico, irreverente de sua pena. Creio que com ele morre praticamente esse temperamento de jornalista sem papas na língua, desassombrado, atuante profissionalmente nos momentos mais tristemente dramáticos de nossa vida política atual, causadores de tantos estragos à democracia brasileira se pensarmos no que temos visto acontecer nos três poderes, particularmente no executivo, a ponto de deixar a nós todos eleitores enojados de tantos escândalos e de tanto cinismo. Por isso, entendemos as palavras do escritor Antônio Torres, ao lamentar, chorando, a morte de Wolff e ao afirmar ter o jornalista “... sempre ter se colocado na contramão das tendências.”
Desde os tempos do Pasquim (1969) e mesmo do Pasquim 21, sua atuação no jornal soube dar o tiro certo na denúncia corajosa de nossos erros de nação, e notadamente, de políticos e de política minúscula e sem escrúpulos. Seu verbo não edulcorava fatos e desmandos dos poderes público e privado. Dissecava o ventre de um país injusto em seus múltiplos aspectos. Não era de usar eufemismos contra os ímpios e traidores da pátria, ainda que fosse o Chefe da Nação.
O cartunista e escritor Ziraldo incluía Wolff entre os cinco melhores contistas brasileiros. Não cheguei a ler sua produção ficcional. Entretanto, deli li, e assim mesmo na parte que me interessava em trabalho de pesquisa para doutorado sobre camadas mais baixas da sociedade brasileira, o calhamaço Rio de Janeiro: um retrato ( a cidade contada por seus habitantes) – obra organizada por ele com uma equipe de repórteres e fotógrafos publicada pela Fundação Rio em 1990.
A obra reflete a extensa pesquisa de campo da realidade do cotidiano carioca da década de 1980. Seria publicada em 1986, mas houve obstáculos de vária natureza e só veio a lume na data acima referida. No prefácio, Wolff considera essa obra como resultado de um objetivo seu: “... publicar um livro de autoria do povo carioca.” ( op. cit. p. 20).
Passando de relance os olhos pelo Índice do livro, vemos o quanto a pesquisa foi intensa, com títulos de capítulos que atestam a multiplicidade de seus depoentes: “A velhinha da rodoviária”, “No banheiro do cinema Íris”, “Os pivetes”, “A prostituta que evita homens”. “O lúmpen”, “O professor mal remunerado” etc., etc.
Vale a pena, pela pertinência das ideias do autor e da sua atuação como jornalista intrépido, ler o prefácio ao livro e o seu posfácio. Digo valer a pena porquanto é, no discurso livre e desreprimido desse jornalista, que compreendemos de que modo funciona a engrenagem de nosso país. Dissecar com a virulência e a corrosão dos grandes críticos bem penso ter sido um dos lemas de Fausto Wolff.
Nos últimos tempos, quando estava dando sinais de seus males físicos, houve um breve período no qual usava o espaço de sua coluna ou parte dela, para publicar textos de seus leitores e admiradores, o que comprova o quanto prezava o leitor, em especialmente o leitor com talento para expor ideias.
Informa a edição do JB, já referida, que, nos últimos dias, já por não poder escrever suas crônicas com a regularidade devida, o Caderno B estava republicando-lhe artigos antigos. O deste sábado, repito, fora escrito em 2006 e tem por título “A força da verdade” – crônica que analise um filme de George Clooney – Boa noite, boa sorte. O filme narra os momentos difíceis da vida de um repórter e apresentador de TV, o americano Edward Roscoe Murrow, da CBS, nos difíceis tempos da era McCarthy. Murrow - confessa Wolff -, era um dos seus heróis jornalísticos.
O filme mostra como a dignidade, a ética de um grande jornalista deve ser preservada a todo custo. A crônica não deixa, pois, de ser uma espécie de imagem especular do próprio Fausto que, ao longo de sua bela carreira de jornalista, manteve-se afastado dos poderosos, os quais por ele foram sempre alvos de sua pena combativa, enérgica, pondo a ética jornalística acima do poder da mídia subserviente e cúmplice das venalidades humanas.
Suas palavras finais, na mencionada crônica, trazem essa lição de ética do autêntico profissional da imprensa e soam como sábias palavras, sábias também como advertências àqueles futuros jornalistas e repórteres que a imprensa brasileira merece ter em seu meio: “(...) Aconselho aos jovens jornalistas que vejam o filme e compreendam que nossa bela profissão ou é feita daquela maneira ou é outra profissão.” ( B2, JB, Caderno B).