Exclusivo: leia artigo sobre Teodoro Bicanca

 FEMINILIDADES SERTANEJAS EM TEODORO  BICANCA: REPRESENTAÇÕES

Francisca Arlene  SOARES ( UFPI [1] )

Sebastião Alves Teixeira LOPES ( UFPI [2] )

Maria Dione Carvalho de MORAES ( UFPI [3] )

 

 

RESUMO

 

Abordamos a representação feminina no universo sertanejo piauiense presente no romance Teodoro Bicanca (1948), do escritor Renato Castelo Branco. Nesta perspectiva, examinamos a presença da mulher nas práticas sociais e discursivas do cotidiano sertanejo no espaço narrativo do romance, observando como estas práticas são construídas em um universo no qual os papéis de gênero encontram-se hierarquizados. A análise centra-se nas personagens femininas: Siá Ana e Joaninha, habitantes, respectivamente, dos espaços rural e urbano do interior do Piauí. Focalizamos, especialmente, essas personagens pelo destaque que lhes é dado, na narrativa, em seus espaços de vivências. Ora alimentando, ora confrontando expectativas historicamente cristalizadas no imaginário  da cultura sertaneja em relação aos papéis sociais tidos como feminino, elas vão tramando suas astúcias, tecendo suas resistências, mesmo sob instâncias de dominação na qual encontram-se inseridas. São duas mulheres de gerações distintas que  em vários momentos rasuram os papéis que lhes foram prescritos pela sociedade patriarcal do início do Século XX. Como fundamentação teórica, acionamos contribuições dos estudos de gênero, dos estudos culturais e da teoria pós-moderna. Visto que o romance em análise é de autoria masculina, procuramos perscrutar as entrelinhas, nas fissuras que o autor promove a fim de extrair os fragmentos das diversas maneiras de essas personagens procederem, procurando demonstrar que, em que pesem as estereotipias no imaginário das feminilidades sertanejas, mulheres no sertão não têm suas vidas inscritas apenas no campo da dominação.

 

PALAVRAS-CHAVES: Literatura piauiense - Renato Castelo Branco - Teodoro Bicanca. Representações femininas - Gênero.

 

ABSTRACT

 

 

We broach female representation in the Piauiense countryside universe present in the novel Teodoro Bicanca (1948), by Piauiense writer Renato Castelo Branco. From this perspective, we examine the presence of women in social and discursive practices of everyday life in the backcountry narrative space of the novel, observing how these practices are built in a universe in which gender roles are very hierarchical. The analysis focuses on female characters: Siá Ana and Joaninha, inhabitants, respectively, of rural and urban spaces in the interior of Piauí. We focused especially on those characters because of the prominence given to them in the narrative where they live. Now cherishing, sometimes confronting expectations historically crystallized in the imaginariness of the countryside culture in relation to social roles seen as feminine, they plot their cunningness, weaving their resistance, even in instances of domination in which they are inserted. They are two women from distinct generations who at various moments obliterate the roles dictated to them by the patriarchal society of the early twentieth century. As a theoretical foundation, we provide contributions from studies on gender, cultural studies, and postmodern theory. Since the novel at issue is of male authorship, we tried to peer in between the lines, in the gaps the author promotes so as to extract the fragments of the various ways these characters behave, trying to demonstrate that, in spite of the stereotypes in the imaginariness of country femininities, women in the countryside do not have their lives listed only in the field of domination.

KEYWORDS: Literature from Piauí. Renato Castelo Branco. Teodoro Bicanca. Female Representations. Genre.

 

 

I-             Introdução

 

            A representação social[4] de gênero marca diferenças relevantes quanto aos papéis  de homens e mulheres, no cruzamento das esferas pública e privada. No caso em análise, a obra Teodoro Bicanca, escrita em 1947 por Renato Castelo Branco, e publicada em 1948, constrói personagens masculinos e femininos dos mundos rural e urbano no interior do Piauí[5], no início do século XX. Aqui, voltamos a atenção para duas personagens femininas em um microcosmo social reconhecidamente prescritivo mas que, ao mesmo tempo, como  diz Certeau (1994), pelas “artes do fazer”, redimensionam posições.

Na atualidade, a escrita de uma história das mulheres visa à  uma reintegração dessa  história à da própria humanidade, sem lugar para diferenças naturais ou biológicas em relação aos homens[6]. Assim, especificidades desta história passam a ser vistas como intrinsecamente ligadas ao lugar ocupado pela mulher e às atividades por ela desempenhadas nos micro e macrocosmos em que se inserem. Certamente, isto aponta para o conceito de experiência (THOMPSON, 1981)[7] que vincula sujeito e estrutura de modo que a  história é vista  como o particular experimentado pelos indivíduos. Assim, impõe-se escapar às armadilhas da idéia de um modus operandi naturalizado como tipicamente feminino cujos determinantes sejam estranhos ao campo da cultura.  De fato,

 

É a partir da observação e do conhecimento das diferenças sexuais que a sociedade cria ideias sobre o que o homem, o que é mulher, o que é masculino e o que é feminino, ou seja, as chamadas representações de gênero (GOUVEIA E CAMURÇA, 2012, p. 12)

 

            A suposta natureza feminina da mulher a destinaria à maternidade, tendo na capacidade ou dom de gerar filhos, o elemento demarcador de sua identidade[8]. No processo de classificação cultural, o papel de procriar, atribuído à mulher, estaria concernente com a normalidade; recusá-lo significava estar à margem desta normalidade.

Ao fazer da diferença biológica o critério supremo da classificação dos seres humanos, fica-se condenado a pensá-los em oposição um ao outro. Dois sexos, logo duas maneiras de ver o mundo, dois tipos de pensamento e de psicologia, dois universos diferentes que permanecem lado a lado, sem jamais se misturar. O feminino é um mundo em si, o masculino é outro, e eles dificultam a travessia das fronteiras e parecem ignorar as diferenças sociais (BANDITER, 2005. p. 157).

 

            As fronteiras entre ser mulher e ser homem, sustentadas pelo discurso das naturezas opostas ficam claramente demarcadas, dificultando a troca dos papéis atribuídos a cada um. Nesse sentido, ao se pensar em identidade feminina ou masculina, logo vem à mente quais papéis são reservados a cada gênero. Baseados em atribuições assimétricas entre os sexos masculino e feminino, as relações de gênero acabam sendo marcadas por ligações de desigualdade e dominação, historicamente controladas pelo homem, no âmbito da dominação masculina (BOURDIEU,2003).

            Esta fabricação de homens e mulheres requer um investimento continuado, pois “a construção de gênero é realizada nas múltiplas instâncias sociais, nas diferentes práticas, espaços e instituições, através das intrincadas redes de relações entre os sujeitos” (LOURO, 1997, p. 174). Na reiteração de comportamentos e condutas, os gêneros se constituem; não são naturais. Como dito por Simone de Beauvoir, não se nasce mulher; torna-se mulher. .

            Nesta perspectiva, Judith Butler refere gênero definindo-o como performático, de modo que ser homem ou mulher é uma performance cultural, “constituída mediante atos performáticos compelidos que produzem o corpo no interior das categorias de sexo e por meio delas” (BUTLER, 2003, p. 9). Desse modo, os gêneros são produzidos a partir da repetição de diversas práticas que os definem histórica e culturalmente, na “reiteração de uma norma ou de um conjunto de normas” (BUTLER, 2003, p. 167). 

            Maria Lúcia Rocha Coutinho investiga a evolução histórico-social da condição feminina no Brasil, buscando entender estratégias de controle desenvolvidas por mulheres em aparente submissão e considera que

 

nem vitimas, nem algozes, acreditamos que  as mulheres ao longo dos anos foram tecendo modos e resistência a esta opressão masculina, formas de exercer um certo controle sobre suas vidas a despeito de uma situação social adversa (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 19).

 

            É possível ler na submissão feminina, estratégias de enfrentamento, de resistência à posição de poder e autoridade dos homens. Mesmo em um contexto adverso, mulheres teriam desenvolvido táticas de sobrevivência emocional e de poder dentro do sistema patriarcal. Para a autora, “as estratégias empregadas, em geral, estão relacionadas à distribuição de poder e autoridade, não apenas no espaço doméstico, mas também na sociedade de um modo geral” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 21).

            Esta perspectiva desloca os binarismos de gênero: opressor versus oprimido, dominador versus dominado; questiona a ideia da mulher massacrada pelo homem, sem recursos de defesa nos conflitos referentes à esfera privada e pública[9]. Para além da superfície das dicotomias, o conceito de experiência de Thompson (1981) foi aplicado à análise da trajetória de mulheres operárias, através de histórias de vida que lhe permitiram trabalhar a idéia de um destino de gênero: "é o destino sob a forma da necessidade que está envolvido no trabalho doméstico como no trabalho assalariado. O trabalho, o casamento, a maternidade, se sucedem naturalizados como ciclos da natureza” (LOBO, 1989: 177).   

             Mas, sobretudo, nas sociedades ocidentais,  mulheres participam ativamente do espaço público, através do trabalho considerado produtivo e de responsabilidades sociais:

 

para além das esferas históricas e culturalmente reservadas a cada um  sexo –  que são categorias mais pertinentes ao estudo da história de mulheres  e de homens da sociedade ocidental até a primeira metade deste século [XX], o que emerge da ´história do tempo presente´ são imagens retocadas  ou, mais do que isso, alteradas, modificadas: as diferentes realidades vividas por homens e mulheres, protagonistas da trama social, emergem por intermédio de fontes orais e escritas, nas quais discursos contraditórios sinalizam o confronto  entre o imaginário, os valores, os estereótipos e as impressões culturais. (....). [De fato a] história do tempo presente, relativa à segunda metade deste século, [é um] período  caracterizado por muitas rupturas, mutações e pelas conquistas femininas do espaço público. Portanto, além das vinculações ainda bastante presentes com o espaço privado, a memória das mulheres do ´nosso tempo´ mistura e reconstrói as experiências ligadas ao domínio público (CATANI et al,  1997: 44).

 

            No entanto, lidamos, aqui com representações de feminilidades sertanejas, na primeira metade do século XX, quando a reflexividade sobre uma história das mulheres não apresentava o vigor atual[10]. Além do mais, na literatura especializada, diferenças de gênero mostram-se bem definidas em espaços sertanejos, sobretudo, nordestino: “ali se gestou uma sociedade fundamentada no patriarcalismo. Altamente estratificada entre homens e mulheres” (FALCI, 2002, p. 243). Como isto pode ser visto no romance Teodoro Bicanca?           

II-         O feminino na tessitura do cotidiano sertanejo em Teodoro Bicanca

             Certeau (1994) fundamenta seus argumentos na ideia de que o “homem ordinário” (p.62) é capaz de organizar um cotidiano mediante táticas de resistência ao que é oficialmente imposto. Tais táticas levam atores sociais a escapar das redes de poder que visam a discipliná-lo. Nesse sentido, defende que a invenção do cotidiano se deve às “artes de fazer” (p.91). Estas pressupõem astúcias, “piratarias”, táticas articuladas sobre os “detalhes” do cotidiano, responsáveis, então, por produzirem uma rede de micro-resistências”.            Essa perspectiva na análise da representação feminina possibilita pensar sobre a representação do cotidiano de mulheres sertanejas nordestinas para além da sua convivência com severas políticas de imposições masculinas. O texto analisado aponta nas linhas ou entrelinhas para as  frestas que o cotidiano apresenta? Podem-se entrever estratégias ou táticas de resistências criadas e recriadas, mesmo  “por trás dos panos”, como se diz popularmente?  

            Teodoro Bicanca é o título do romance e nome do protagonista, este, um filho de retirantes da seca de temporalidade indefinida, ocorrida no Ceará, cuja família migra para o Piauí e se instala como moradores na Fazenda. Areia Branca de propriedade do coronel Damasceno enredo se desenrola entre os anos de 1915 e 1935.  Narra os dramas vividos por Teodoro nos dois espaços em que atua: na fazenda Areia Branca e em Parnaíba.

             A obra apresenta valores e atitudes em uma discursividade sobre mulher em posições de submissão e passividade, sendo tais discursos difundidos pela sociedade e introjetados pelo próprio sujeito feminino. Assim, em várias situações, na narrativa, este sujeito se deixa envolver pelas regras de opressão impostas. Por outro lado, há momentos nos quais vislumbram-se ações que se contrapõem ao conformismo, às regras estabelecidas. São brechas de resistência que, de certa forma, acabam demarcando espaços diversos de atuação, mesmo que dentro dos limites da  época.

            Siá Ana é uma dessas personagens. Seu espaço de vivência é a Fazenda Areia Branca situada próximo à cidade de Parnaíba. É a moradora mais antiga do local, sobrevivente do regime escravagista. Pouco se sabe sobre seu passado, pois é muito reservada. Apenas alguns episódios são conhecidos do/a leitor/a. Isto ocorre quando, em segredo, ela os relata a Teodoro, misturando-os às narrativas enredadas ao, então, garoto. Nisto, cria em torno de si um clima de mistério.

Viúva desde jovem, Siá Ana nunca mais se casou, nem se envolveu com ninguém. Esta personagem pode ser vista representando o que diz pesquisa historiográfica: segundo Falci (2000), a mulher viúva no sertão estava condenada a uma vida de solidão. Os olhares sentenciosos da sociedade impeliam-na a esta condição. Siá Ana “nunca mais sentira cheiro de homem depois da morte do marido” (CASTELO BRANCO, 1948, p. 99). Teve um filho que morreu ainda pequeno mas exerce o convencional papel de mãe ao cuidar de Teodoro,  garoto, como se fora seu filho, em virtude de o menino ser órfão de mãe. Assim,  é retratada pela discursividade que destina à mulher a vocação para a maternidade.

Essa característica ligada ao cuidado é um traço marcante da personalidade dessa personagem. Ela o executa cotidianamente, seja como parteira; seja realizando curas através de rezas ou por meio de remédios à base de plantas; seja confortando emocionalmente as pessoas.

 

(...) E Siá Ana estava sempre pronta para ajudar a todos, com a mesma boa vontade e a mesma dedicação.

(...)

E, quando saía pela estrada, com a carapinha branca rebrilhando ao sol, os caboclos que cruzavam por ela cumprimentavam com respeito, se descobrindo. Só Siá Ana tinha estas honras, além do pessoal da casa de telha. Porque seu poder era quase tão grande quanto o do coronel (CASTELO BRANCO, 1948, p. 46-47).

 

            No texto, a personagem interioriza o discurso que impõe à mulher a função de estar a serviço dos outros, em detrimento de seus próprios desejos e realizações. Seus dramas, conflitos e anseios são ocultados, ficando visíveis apenas as ações de uma vida de dedicação. A personagem assume o papel atribuído ao espaço privado, tendo em vista que o cuidar é uma atividade que se aproxima das tarefas[11].

            Dialeticamente, a condição de viuvez e de rezadeira, de Siá Ana, permite outras leituras, como por exemplo, a de que estas atividades a situam na esfera pública e social, levando-a a subverter a posição de submissão da mulher, tão naturalizada naquele espaço, visto que transita livremente com altivez e autonomia, marcando a força de sua presença. Nesse aspecto, as atividades de reza e de cura podem ser lidas também como estratégias de resistências, um saber/poder, que a personagem desenvolve, no cotidiano, para poder garantir a sobrevivência, haja vista, sua condição de viúva. Nesse ponto, a personagem mostra-se astuta, abrindo frestas capazes de constituí-la como sujeito.

            Historicamente, conforme Rocha-Coutinho (1994), foram atribuídas à  mulher  uma série de características como fragilidade, docilidade, integrando-lhe uma suposta “natureza” à maneira essencialista. O  modo de agir de Siá Ana, entretanto, foge a esse padrão de mulher como ser frágil. Isto pode ser observado no episódio seguinte no qual a personagem enfrenta Malaquias, o capanga mais valente do coronel Damasceno, quando este intentava entrar na casa dela para pegar Teodoro, por tê-lo flagrado beijando Piedade, sua filha.

 

Mas Siá Ana, quando o viu chegando foi logo dizendo. Que Teodoro estava lá mesmo, mas, mas que desconhecia homem que fosse capaz de ir tirá-lo de lá. Ele que pisasse no batente de sua casa para ver o que acontecia. Botaria quebranto nele e, ainda por cima, caparia de rastro.

A ameaça deixou Malaquias gelado (CASTELO BRANCO, 1948, p. 119 -120).

                                       

            A cena remete para outra imagem: a representação da mulher sertaneja destemida, valente, com autoridade moral e personalidade ancestral da força mística ao insinuar-se como capaz de ameaçar o que era mais valoroso para o homem sertanejo – a virilidade.  A coragem que  demonstra mostra o poder da personagem que não hesita, não reinvidica a proteção ou a defesa de um homem. A  exemplo de outras   mulheres sertanejas representadas na literatura, como Maria Moura, de Rachel de Queiroz, Teresa Batista, de Jorge Amado e Diadorim, de Guimarães Rosa, ela comanda e controla a situação de enfrentamento ao oponente. A coragem demonstrada por Siá Ana nesta cena a aproxima da representação da mulher-macho, na historiografia:  “no Nordeste, até as mulheres seriam masculinas, macho, sim senhor” (ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 165).

            Outro momento que confirma a autoridade moral, a força e a coragem da personagem refere-se a um episódio do passado por ela evocado e transmitido a Teodoro. Ocorreu quando seu homem fugiu da senzala. Ela foi torturada por ocasião da surra que “apanhara para denunciar seu negro, surra tão grande que a deixara descadeirada, com uma perna manca que nunca mais sarou” (CASTELOBRANCO, 1948, p. 58).

            Nesse episódio, a resistência da personagem se dá pelo silêncio: mesmo torturada, não entrega seu homem, suporta a violência, mas não se fragiliza, não se submete. Rasura, pois, o lugar de submissão e fragilidade reservado à mulher ao se insubordinar em seu silêncio, pois no silêncio, o sentido se faz em movimento, a palavra segue seu curso, o sujeito cumpre a relação da sua identidade (e de sua diferença)” (ORLANDI, 2002, p. 161). O silêncio da mulher Ana aponta para marcas que ficaram para sempre incorporadas, gerando um sentido outro de se constituir mulher, forte e decidida.

            Assim, se por um lado Siá Ana é representada com estereótipos de uma visão conservadora do feminino, por outro, percebem-se as criativas estratégias capazes de deslocar mecanismos de dominação no espaço em que se constitui como mulher, de certa forma, minando determinadas convenções. Nesse aspecto, as  identidades de Siá Ana emergem na trama cotidiana de tecer saberes, cujos poderes acabam por lhe conferir posição de destaque em um espaço de domínio do masculino.

Siá Ana situa-se no cenário rural. No cenário urbano de Teodoro Bicanca, várias mulheres transitam no espaço narrativo. Joaninha é uma delas. Morena, alta, bonita, meiga e rica. Filha do coronel Carvalho, dono da maior empresa de exportação da cidade de Parnaíba. É considerada por algumas mulheres da elite local como um bom partido, haja vista, verem-na como prendada e de boa família. Mas é, também, tida como vulgar pelas mulheres de classe baixa, por considerarem seu comportamento desviante para uma moça de sua classe social. Ela se constitui, então, como alvo dos olhares da cidade. Joaninha demonstra ter consciência destes lugares que lhe são atribuídos e, a despeito de transitar ou não por eles, não deixa de construir uma terceira via: a de quem rasura alguns papéis de gênero tradicionalmente instituídos, embora dentro do lugar social e das possibilidades que lhes são favorecidas à época.

            Em um primeiro momento, Joaninha é apresentada no papel de moça casadoura, vigiando a passagem do “bom partido” que chegara recentemente a Parnaíba – o advogado Abedias.

 

A Joaninha, filha do coronel Carvalho, então, era infalível. Chegavam a dizer que ela punha moleque no portão de casa o dia todo, vigiando, para avisá-la quando apontasse, lá no fim da rua, a barata do doutor Horceno. Não se sabia ao certo qual dos dois era o preferido de Joaninha. E Doloriza resolvera o problema sentenciando que “para aquela isso não fazia diferença – tudo que caísse na rede era peixe”. Mas a dúvida cedo se desfez, quando o coronel Carvalho, por intermédio de Tenório, mandara convidar o doutor Abedias para advogado de sua firma.                       (CASTELO BRANCO, 1948, p. 181).

 

            Pelo texto, a personagem parece se inserir no modelo patriarcal que coloca o feminino na invisibilidade, à medida que se posiciona no papel da mulher à espera de um “bom partido”, sem receio de se acomodar à conveniência de uma relação amorosa arranjada. Nas atitudes de Joaninha, a imagem da aparente submissão feminina. Aparente porque é possível verificar, nessas suas ações, estratégias para conseguir o que deseja, mantendo o status de filha do comerciante mais rico da Parnaíba. Contudo, não é passiva nesse papel, antes, tem o controle dele, apresenta consciência do que faz. O fato de ser  “mal falada”, como sendo uma “mulher fácil”, apresenta Joaninha como um feminino mais livre, com vontade própria. Em razão disso, não se torna invisível, ao contrário, é o centro das atenções em sua cidade. E ela se mune de uma característica particular: o caráter decidido, embora atuando no interior de estratégias de sedução tidas como femininas, conforme demonstrado no baile do clube Cassino, importante local de encontro da elite parnaibana. Na cena, Abedias se encontra absorto, envolvido pelas lembranças do passado, enquanto aquela cidade ali representada aguardava o momento em que o jovem advogado tiraria Joaninha para dançar. Enquanto isso, ela passava “rodopiando uma valsa com o Domingão, seu velho pretendente. Conversava animada, procurando despertar ciúmes” (CASTELO BRANCO, 1948, p. 188).

            Esta ação de Joaninha a revela como mulher destemida, movendo-se a partir de seus desejos. Não se preocupa com os olhares vigilantes da cidade, enfrenta-os segura de si, valsando de forma a provocar a atenção de Abedias, até então, indiferente a ela, por supô-la fútil e frívola como as demais moças de sua classe social. Mas ela não se abate frente à rejeição do rapaz. Em contrapartida, mostra estar aprendendo um novo modo de ser mulher, construindo forma própria de conduta, manifestando alegria no envolvimento com o futebol praticado por homens, experimentando, ali, momentos de alegria e prazer. Assim, embora interessada em Abedias, inicia um namoro com Domingão, não para fazer ciúmes a Abedias, mas por  ser Domingão, então, a maior estrela do Parnaíba, seu time de paixão.

            A relação de Joaninha com Domingão se dá sem os compromissos que a sociedade atribuía ao namoro das moças de sua classe social. Ela vive tal experiência como forma de diversão, sob o clima da paixão esportiva e ao perceber discrepâncias entre eles, toma a iniciativa de por fim ao relacionamento. Exercitando a racionalidade, característica tida como pouca feminina,  rasura o modelo de mulher naturalizado pela mentalidade patriarcal  pela qual ações do feminino se restringem ao campo  emocional, ao tempo em que afirma o que não deseja para si.

            A atitude de resistência de Joaninha, ao padrão estabelecido para o feminino, apresenta-se, ainda, no episódio em que os vareiros e estivadores, sob o comando de Abedias, desfilam nas ruas centrais de Parnaíba. Era aniversário da cidade (14 de agosto de 1935). Temendo uma revolução desses trabalhadores, as autoridades só lhes permitiram desfilar no horário oposto aos demais grupos

.

À tarde, quando o Sindicato dos Vareiros iniciou o seu desfile, o aspecto da cidade modificara-se por completo. Perdera o ar festivo e rumoroso, para se transformar numa cidade morta e deserta.

(...)

Ao passar pela casa do coronel Carvalho, Joaninha estava na janela – único rosto feminino que presenciou o desfile, as únicas mãos que, timidamente, bateram palmas para os vareiros. Abedias, ao vê-la, fez um sorriso. E sentiu, encabulado, que seus olhos se enchiam d’água (CASTELO BRANCO, 1948, p. 218-220).

 

            Essa microação de Joaninha altera o desenho do comportamento feminino pautado na obediência e submissão, pois mostra sua atitude de enfrentamento a valores enraizados em convenções morais. Enquanto todas as demais moças eram impedidas de assistir ao desfile, ela era o “único rosto feminino” (CASTELO BRANCO, 1984, p. 220) a apoiar o grupo, pois parecia compreender a importância e o caráter daquela organização sindical, destoando de boa parte da população local. Assim, enfrenta execração das “boas famílias” ao apoiar o movimento proletário e ao se colocar ao lado de Abedias em tempos de rumores de que ele era um líder comunista. Ele, por seu turno, só a ela confidencia os perigos que antevê. Embora  saiba dos riscos que corre apoiando-o como amigo, recusa-se a ir para o Rio de Janeiro a mando do pai, “mas Abedias aconselhara-a a obedecer o pai e fizera-a a ver que não havia outra solução”(CASTELO BRANCO, 1948, p. 224).                                                         

            Essa conduta de enfrentamento ao pai mostra que essa personagem ultrapassa os padrões tradicionais vigentes. Ao acatar o conselho de Abedias, que não consegue se livrar dos discursos sobre a mulher como ser frágil, ela revela, contudo, não possuir ainda a independência necessária para efetivamente quebrar o ciclo das convenções que definem seu lugar como mulher, na sociedade do seu tempo. Acaba indo para o Rio de Janeiro, a fim de não ser alvo das perseguições do estadonovista, conforme a ordem do pai e o desejo de proteção do amigo.

            Tal conduta é compreensível. Não era fácil, no contexto, reverter padrões de dominação masculina, muito menos o envolvimento em lutas revolucionárias, pois excedia aos limites daquela sociedade, julgada, sobretudo, sob o olhar masculino. Assim, do aparente ajustamento às convenções vigentes aos vários comportamentos transgressivos, Joaninha cria brechas por meio das quais se posiciona como uma espécie de elemento (des)centralizador das personagens femininas da elite parnaibana narradas em seu cotidiano feminino, a partir do moralismo e da tradição.

 

III-           Considerações Finais

 

            Por meio de práticas que ultrapassam a representação de papéis ligados à submissão da mulher, Siá Ana e joaninha, em Teodoro Bicanca, são personagens que contribuem para se pensar maneiras várias de atuação social e pessoal do feminino na época e no sertão.

            Duas gerações distantes, ocupando espaços distintos na arena social. Duas mulheres que em suas vivências cotidianas rasuram, em vários momentos, o discurso uníssono tradicional da identidade feminina sujeitada e frágil. Ambas se constituem como mulheres notadas pela firmeza e coragem com que enfrentam forças opressivas do poder (Siá Ana) e da moral (Joaninha) vigentes.

           

REFERÊNCIAS  

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[1] Mestranda em Letras pela Universidade Federal do Piauí – área de concentração: Estudos Literários – Linha de Pesquisa: Literatura, Cultura e  Sociedade. Email: [email protected].

[2]  Professor Doutor no CCHL/UFPI; no Mestrado em Letras no CCHL/UFPI. E.mail: [email protected]

[3] Professora Doutora no DCS/CCHL/UFPI; no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas (Mestrado e Doutorado)/CCHL/UFPI; no Programa de Pós-Graduação em Antropologia/CCHL/UFPI e no Programa de Pós-Graduação em sociologia/CCHL/UFPI. E-mail: [email protected].

[4] Sobre representação social e gênero, ver Arruda (2002).

[5] Para uma problematização do termo interior como usado no Piauí e sua relação com o imaginário de sertão, ver Moraes (2006)

[6] A propósito, postura contemporânea, pós-movimento feminista, sem abdicar das conquistas pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, traz elementos considerados como expressivos da diferença de gêneros (no caso, a expressão da emoção) como uma nova qualidade: “uma epistemologia feminista não descarta a emoção enquanto via do conhecimento (...), mesmo porque a emoção pode muito bem fecundar a razão” (SAFFIOTI, 1992: 208).

[7] Em Benjamim (1975), experiência (Erfharung) refere-se às sociedades artesanais, em oposição à  vivência (Erlebnis), que se  reporta  às sociedades ditas modernas.

[8] Para Fentress e Wickham (1994), há uma diversidade objetiva de experiências femininas construídas a partir das formas diversas de estruturação familiar, de cooperação entre os sexos ou mesmo de cumplicidade com os homens, as quais têm a ver, inclusive, com os diferentes níveis de tolerância masculina e de exclusão sexual. 

[9] Para uma abrangência histórica mais ampla do imaginário que relaciona estreitamente a mulher ao espaço doméstico, privado, Michelle Perrot  diz que se nos tratados dos séculos XVII e XVIII falava-se do dono-de-casa, verdadeiro chefe de empresa rural. Em obras equivalentes, do final do século XVIII e início do XIX, desenha-se a concepção de uma economia doméstica feminina, com os discursos, nessa época, dirigidos com exclusividade, às mulheres, donas-de-casa e encarregadas do lar. 

[10] Como refere Moraes (2003), a construção sociocultural de mulheres e homens é marcada  e estruturada pelos tipos de papéis sociais desempenhados e as diferentes trajetórias individuais, estruturando-se em consonância com os diferentes papéis sexuais. Esses diferentes percursos são, por sua vez, constituídos por  múltiplas  variáveis, como o meio social, o nível de estudos, a participação política, a faixa etária, etc. Não seria, pois,  simplesmente a pertença a um dos gêneros mas a própria construção cultural deles, seus limites e possibilidades sociais, remetendo às experiências  e trajetórias de  vida de cada um, o que definiria feminilidades e masculinidades.

 

[11] Moraes (2003) observa que na construção social de gênero entre famílias camponesas é comum que  filhas –  em geral também, irmãs – partilhem, desde cedo, com a mãe, a responsabilidade  de certas tarefas: cuidar de irmãos e irmãs menores, dos bichos e plantas do quintal, um conjunto de seres dependentes do cuidado feminino e  para os quais se volta um olhar fraternal/maternal. Esse olhar para coisas (produtos em volume pequeno, produzidos no quintal), seres pequenos (crianças, animais, plantas), tarefas tidas como  femininas (pilar arroz, fiar, tecer, transportar água, preparar alimentos...) costuma ser acompanhado de um vocabulário carregado de diminutivos que expressam um  lugar distante dos negócios grandes, a cargo dos homens.