Esperança Garcia
Esperança Garcia

Reginaldo Miranda*

Das páginas amarelecidas de dois documentos esparsos do Arquivo Público do Piauí, salta o olhar atento de Esperança Garcia, jovem escrava da Real Fazenda, um nome esquecido de nossa história. Os documentos foram revelados ao público em 1979, pelo historiador Luiz Mott[1], trazendo à luz da história essa mulher negra e escrava, porém, instruída, com visão política e consciência de seus direitos. Trata-se de uma carta-denúncia que ela dirigiu ao governador da capitania Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, em 6 de setembro de 1770, dizendo dos abusos que sofria por parte do administrador Antônio Vieira do Couto, em uma das fazendas do Real Fisco. Mott, enfatiza a peculiaridade de tratar-se de documento produzido por uma mulher abordando problema específico que lhe envolvia, quando o sexo feminino permanece praticamente ausente da documentação colonial; também, o fato de uma mulher escrava dominar a escrita naquele contexto histórico, esse fato podendo demonstrar um aspecto peculiar que assumiu a escravidão no sertão pecuarista do Piauí[2]. Mas quem era essa escrava que ousou denunciar esses abusos, dirigindo-se diretamente ao governador da capitania? No primeiro parágrafo da carta ela se apresenta, qualificando-se como se fora uma petição. Vejamos:

“Eu Sou hua escrava de V. S., da administração do Capam Antº Vieira do Couto, cazada. Desde que o Capam pª lá foi administrar, q. me tirou da fazdª dos Algodois, aonde vevia com meu marido, para ser cozinheira da sua caza, onde nella passo m.to mal”[3].

Era, portanto, uma mulher casada, alfabetizada, cozinheira, escrava do Real Fisco, moradora na fazenda dos Algodões, onde vivia em companhia de seu marido, de quem era afeiçoada e sentia falta.

Ora, sabemos que as fazendas do Real Fisco, pertenciam aos jesuítas, de quem foram sequestradas no ano de 1760. E como não era costume se alfabetizar escravos, vê-se que ela possuía uma situação diferenciada de seus irmãos de sangue. Era alfabetizada porque sempre fora uma escrava de casa[4] e não de eito[5], criada entre aquelas que serviam diretamente aos jesuítas em trabalhos domésticos, sendo por eles alfabetizada. O fato de ser cozinheira, e cozinheira de referência ao ponto de justificar ser levada à força para servir o administrador em outra fazenda, reforça essa hipótese. Pensamos que sua mãe deveria ser uma escrava da casa dos jesuítas, responsável pela culinária dos padres, com quem a filha aprendeu o ofício. E por ter sido criada ali, desde cedo despertou a estima de seus senhores, que lhes desasnaram o espírito, alfabetizando-a. É esta uma biografia possível, a mais lógica diante das informações contidas na missiva. Sigamos outros trechos de seu petitório:

“A primeira hé q. ha grandes trovoadas de pancadas em hum filho nem sendo uhã criança q. lhe fez estrair sangue pella boca, em mim não poço esplicar q. sou hu colcham de pancadas, tanto q. cahy huã vez do sobrado abaccho peiada, por mezericordia de Ds. escapei”.

 

Nessa passagem percebemos que era jovem, porque tinha filhos pequenos; e vida sexual ativa, sentindo falta do marido. Era também rebelde, não aceitando passivamente a violência sofrida, daí ser “um colchão de pancadas”.

 

“A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por batizar”.

 

Demonstra que professava a religião dominante na época e ainda hoje, assim vivendo no grêmio da Igreja Católica, sentindo falta das confissões e do batismo do filho mais novo. Prova de que ela mesma era batizada, caso contrário não teria formulado esta queixa. Mais um indício de que vivera com os padres jesuítas.

 

“Pello q. Peço a V.Sª. pello amor de Ds. e do seu Valim.to. ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar ao Procurador que mande p. a fazda. aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e batizar minha filha.

‘De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia”.

 

Esperança Garcia, tinha consciência de sua condição escrava, mas sabia dos direitos que lhe eram inerentes e tinha esperança de ser atendida pela autoridade governamental. Assina legivelmente seu nome, prova de ser alfabetizada. Portanto, é uma correspondência que diz muito de sua autora.

Conforme anotou Luiz Mott, “acompanhando o manuscrito de Esperança Garcia, havia outro documento que esclarece alguns pontos sobre esta questão: infelizmente não é nem datado nem assinado, mas pelo teor e seu conteúdo, tudo faz crer tratar-se de alguém que escreveu em nome dos escravos desta Inspeção”. Este documento acrescenta que o dito administrador retirava os escravos do trabalho na fazenda para o seu interesse particular, fazendo-os trabalhar sem descanso até no turno da noite, “em socar mamona, em desmanchar mandioca e outro serviço. Até tirou algumas escravas para fiar algodão e diz, como no ano passado, que era para (trabalharem) na fazenda e fez redes para o seu negócio e não tem dado cumprimento algum da sua obrigação, não tem corrigido as ditas fazendas faltando a sua obrigação”. A referida correspondência é iniciada nos termos seguintes:

“Conta que dou a V. Sa., da inspeção de Nazaré, que é procurador o Capitão Antonio Vieira do Couto: (ele) tirou uma escrava chamada Esperança, casada, da fazenda dos Algodões e não tem concedido tempo algum para a dita ir fazer vida com seu marido, vendo apertada com vários castigos tem fugido por várias vezes e o dito Capitão tem posto tão tímida a dita em forma que uma quinta-feira deu tanta bordoada com um pau e com ela no chão o depois jurou que havia de amarrar dita escrava se arretirou com dois filhos, um nos braços, de 7 meses e outro de 3 anos; até o presente não tem tido notícia dela e tem feito umas correias pra castigar e diz que veio para ensinar os ditos escravos.

Dessa forma, fica mais uma vez esclarecido que Esperança Garcia foi retirada pelo referido administrador, da fazenda dos Algodões para a de Nazaré, hoje cidade de mesmo nome. Esclarece que a mesma possuía dois filhos, sendo um de sete meses e outro de três anos de idade, o que diz muito da juventude da genitora. Reforça a denúncia da escrava de que fora violentamente afastada de seu marido e de que era constantemente espancada. Por fim, esclarece que a mesma fugira para local àquela altura ignorado.

Mas é certo que sua situação foi revista, retornando algum tempo depois para Algodões. Em 1778, foi elaborada uma relação de escravos da fazenda Algodões, onde aparece a escrava Esperança, crioula[6], com 27 anos de idade, casada com Ignácio, negro de Angola, com 57 anos de idade, com sete crianças, sinal de que teve mais cinco filhos fora aqueles mencionados.

Com base nessas informações, podemos dizer que Esperança Garcia, nasceu em 1751, na fazenda dos Algodões, sendo criada pela genitora na companhia dos padres jesuítas do Brejo de Santo Inácio, onde fora por eles alfabetizada. Casou-se em 1766, aos quinze anos de idade, com o negro angolano Ignácio, de cujo consórcio teve o primeiro filho no ano seguinte, quando contava apenas dezesseis anos de idade. O segundo nasceu no primeiro trimestre de 1770, quando contava 19 anos de idade, tempo em que escreveu a carta-denúncia que depois de longo esquecimento veio a imortalizar seu nome. Conforme as informações posteriores, retornou para a companhia do marido em Algodões, onde aumentou a família e viveu exercendo o trabalho inerente à sua condição. 

Sua história de insubmissão e luta por uma vida mais digna, tem sido abraçada pelos ideólogos do movimento negro, de forma que em 1994, foi criada uma organização não governamental com seu nome, formada apenas por mulheres negras, visando lutar por projetos sociais e políticos para seu segmento; foi erguido um monumento em sua homenagem no Centro Artesanal de Teresina e, posteriormente, um memorial na Av. Miguel Rosa, também em Teresina; o dia 6 de setembro, data em que firmou sua carta-denúncia, foi instituído como “Dia Estadual da Consciência Negra”, através da Lei Estadual n.º 5.046, de 7 de janeiro de 1999; em 2017, o Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil, atendendo a pleito da Comissão da Verdade da Escravidão Negra, outorgou-lhe o título simbólico de primeira mulher advogada do Piauí; por fim, tramita no Congresso Nacional, o projeto de lei n.º 3.772/2019, de autoria da deputada Margarete Coelho, visando inscrevê-la no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, conhecido como Panteão da Pátria.

Portanto, o nome de Esperança Garcia foi resgatado com louvor e hoje faz parte de nossa história. Transformou-se em símbolo de luta dos movimentos negros, feministas e de outras causas sociais e políticas. Por essa razão não poderia faltar nessa nossa galeria de piauienses notáveis por algum relevo de personalidade.

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*REGINALDO MIRANDA, autor de diversos livros e artigos, é membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI. Contato: [email protected]

 


[1] Professor da Universidade Federal da Bahia. Licenciado em Ciências Sociais (USP), mestre em Etnologia (Sorbonne) e doutor em Antropologia (UNICAMP). Pesquisador arguto e inteligente.

[2] Conhecemos outra carta que antecedeu a de Esperança Garcia, pedindo alforria e escrita em 1744, pela escrava mulata Cecília, dos sertões de Pastos Bons, que naquele tempo também pertenciam à jurisdição eclesiástica e administrativa da vila da Mocha, no Piauí.

[3] MOTT, Luiz. Uma escrava do Piauí escreve uma carta. In: Piauí Colonial – população, economia e sociedade. 2ª Ed..  Coleção Grandes Textos. Vol. 8. Teresina: APL-FUNDAC, 2010. Embora tenha saído com o logotipo da gestão anterior, essa edição foi preparada por nosso intermédio quando presidente da Academia Piauiense de Letras e lançada com a presença do autor.

[4] Os escravos da casa recebiam um tratamento mais humanizado, em alguns casos sendo considerados como membros da família. Eram considerados ladinos por entenderem e falarem o idioma lusitano, possuindo habilidade para tarefas domésticas, ao contrário dos vindos diretamente da África, considerados boçais e sendo encaminhados para tarefas na lavoura e, no caso do Piauí, também na pecuária. Em alguns casos as escravas domésticas estavam disponíveis sexualmente para seus patrões, o que pode indicar ser Esperança Garcia, mulata e filha clandestina de algum padre jesuíta.

[5] Dizia-se escravos de eito ou de campo, aqueles que eram direcionados para a dura lida braçal, com jornadas longas e instalações na senzala.

[6] Chamava-se crioulo o escravo nascido no Brasil.