[Paulo Ghiraldelli Jr.]

“De que vale discutir um direito humano abstrato à comida e ao medicamento? A questão está no método de produzi-los e administrá-los. Nesta deliberação sempre aconselho a buscar ajuda do agricultor e do médico, em lugar da do professor de metafísica”. Esse trecho é do conservador britânico Edmund Burke, em seu clássico Reflexões sobre a Revolução Francesa. O sabor pragmático e antifilosófico do trecho poderia muito bem ter atraído o filósofo americano não conservador Richard Rorty. Por quê?

Um professor de filosofia, em especial um metafísico, entraria por alguma teoria da natureza humana, de onde derivaria direitos e, então, avaliaria como argumentar pela melhor distribuição de comida e remédio em nossa vida social.  Burke e Rorty iriam além, como de fato foram mesmo, e assim fariam endossando antes a engenharia simples que a engenharia social. Para eles, se produzimos os bens que necessitamos, resta então administrar a melhor forma de distribuição, o que não tardaria a ocorrer se a demanda se expressa livremente, se não há polícia política para reprimi-la ou ideologia demais para desviá-la. Afinal, uma sociedade avançada (e, dentro de parâmetros ocidentais atuais, livre) a ponto de ter bons produtores certamente também teria bons administradores de demandas. Quando pensamos assim, hoje, os jornalistas nos chamam de “pessoas que pensam de modo não ideológico”. Pode ser. Somos pessoas que acreditam que justiça e benefício social se resolvem bem com participação técnica, com pessoas do âmbito técnico trabalhando inteligentemente, se estamos em uma democracia normal, como as que temos hoje no Ocidente.

Todavia, a questão técnica, que se mostra isenta de ideologia política, repentinamente pode querer exibir o que seria sua faceta ideológica. Ao montarmos o secretariado de nossos governantes, de modo a realizar a simples tarefa de administração de demanda, eis que, ao darmos valor para os experts em administração, podemos estar gerando e praticando algo como “a política ideológica da tecnocracia”. Ora, podemos admitir que a “política da tecnocracia”, também ela, é uma ideologia política, não é verdade? Querer engenheiros no poder e não professores de metafísica, aparentemente uma decisão não doutrinária, para alguns pode ser nada mais nada menos que um desejo também de caráter doutrinário, isto é, uma escolha, também ela, política e ideológica.

Ora, caímos então em uma contradição e, enfim, em um círculo? Como os medievais, William James dizia, repetido por Rorty, que ao darmos de cara com uma contradição, o melhor é tentar fazer distinções. Aqui, nesse caso, temos então de fazer uma distinção. Que seja.

Uma coisa são doutrinas que ligam o que é técnico ao que é metafísico, fazendo com que a técnica, em certa medida, derive de conclusões metafísicas. Outra coisa são doutrinas que não fazem essa ligação ou, melhor dizendo, não colocam tal ligação como logicamente necessária. As doutrinas derivadas do platonismo fazem essa articulação: um entendimento das necessidades humanas e do que é uma sociedade justa se põem na base da atividade dos técnicos do governo. É o que está em A República. As doutrinas pragmatistas não pedem essa articulação. Para o pragmatista, como filósofo, o máximo que ele pode fazer é sugerir que o técnico seja chamado, mas dali em diante ele não vai ter nada a dizer para o técnico senão o “boa sorte, tomara que você consiga nos ajudar a fazer justiça”. É o que está nos livros de Rorty. O pragmatista não terá nenhuma teoria da natureza humana ou da sociedade a apresentar. Pode até ter, claro, como homem comum, mas na condição de filósofo, isto é, como professor de metafísica, ele não vê nenhum motivo para expô-la ao técnico chamado. Uma sociedade que quer realmente ser uma sociedade deve atender essa demanda, a de ter comida e medicamentos e saber distribuí-los bem, não é verdade? Então, que isso se faça! A justificativa disso, que um platonista gostaria de fazer, acreditando que essa preleção filosófica também iria ajudar a decidir a respeito do como seria feita a comida e os remédios e como seria tudo isso melhor distribuído, aparece para o pragmatista como não legítima, ou melhor, desnecessária. Caso fosse necessária, não estaríamos em uma sociedade em seu contínuo serviço cotidiano, mas em algum período de profundas reformas e mesmo de convulsão social. Só nessa época, uma época “francesa”, a política chama professores de metafísica. Depois, ela tem de pegar uma via “inglesa” de política democrática, em que a vida caminha pelo fluxo do cotidiano, não pelos planos utópicos de transformação.

Fiz questão de começar o exemplo com Burke para que fique claro que, se algo parecido com a posição pragmatista é assumido, isso não se relaciona de modo necessariamente umbilical com posições políticas conservadores ou liberais. Política é política, filosofia é filosofia. O pragmatista pensa assim, e por isso ele pode servir a Burke e a Rorty. O platonista não.

Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ