Sonetos rurais
       
           
Se gira o céu na lã de cada ovelha,
desponta o chão na mesa e os galhos cobrem
o marinho sonhar da rude tábua
onde os braços repouso, enquanto vejo,
nos laivos da madeira, húmus, aves,
a chuva, o sol e um eco retardado
de um amando viver, sem mais resguardo
do que passar as mãos nas sobrancelhas

contra o osso de um rosto fatigado
de ser longo e vincado por um sonho,
em que um dia voltava ao outro dia,

num mover de sanhaços regressados
aos ramos que a memória desta mesa
vai abrindo no espaço. Serenava.
 

 
2
       
           
Ao ar devolvo o céu, num assobio,
e o céu de mim, cantando noutro chão,
que também dói, arado a cada ofego,
regressa a outro corpo constelado
de cornos oscilantes e de gruas,
de remos, de folhagens e alimárias
velas de cafunés, carnaubais
e jaqueiras navais em seus luares.

Regressa o céu ao céu, já transformado
no vôo dos  meus olhos, ramo e aragem
conservados num gomo de bambu,

e à querência devolvo o dia todo,
que, respirado em pranto ou salto claro,
é sede, agora, eqüestre  rogo e amor.
 

 
3
       
           
As mãos do pobre e a forma da lagosta 
vendo, chorei. Meu corpo, feito adeus,
era só, machucado pé no esterco,
pesava sobre mim toda a beleza.
Havia um cesto e nele alguém botava
as cabeças cortadas dos borregos.
Aprendi a cantar acompanhado
de impaludismo, sede e fezes verdes.

Na  madrugada,  a fome dos bezerros.
As mãos passava em torno das bicheiras, 
quando vi, na celagem das campinas,

erguido em dor, dourado mar barroco,
sol e sombra lavrando um cão sarnoso
e um porco morto com o céu por cima.
 

 
4
       
           
Respiro e vejo. A noite e cada sol
vão rompendo de mim a todo o instante,
tarde e manhã que são tecido tempo,
chuva e colheita. O céu, repouso e vento.
Vergel de aves. Vou entre viveiros,
a caçar com o olhar, passarinhagem
dos pequeninos sóis e das estrelas
que emigram neste céu de goiabeiras.

Mas sigo a jardinagem, podo o tempo,
o desgosto do espaço, a sombra e o fogo,
as florações da luz e da cegueira.

E, no dia, suspensa cachoeira,
neste jogo sagrado, vivo e vejo
o que veio em meus olhos desenhado.
 

 
5
       
           
Ordenha, ferra, encerro: o humilde cerco
dos seres e das cousas vou fazendo,
e a riqueza do mundo, a fauna, os ventos
na minha curta pele vou cosendo,
ilhéu neste morrer, jamais morrendo
nos momentos que colho e que rejeito,
centauro desta carne e de outra, ausente,
que o verdor do passado vai vivendo.

O esperar para o amor, roçando a morte
em lençóis, massapês, tucuns de redes,
volta, agora, lunar, eternamente.

O instante que de amar o que deixava
partir fez mais amor, fiel, consente
em ser soma de tudo, amor sem gente.
 

 

Canção às Moças Tísicas
      
 
Vejo-vos frágeis e tristes como estátuas de areia 
que carregassem a espera em seus sorrisos raros,  
ó moças tísicas, ó olhares quase lágrimas,  
mãos que não sabem outros gestos que não sejam de adeuses. 
É bem pouco viver, é bem pouco, meninas 
de olhos cheios de memórias e verdes nostalgias, 
de imagens felizes de cidades distantes.  

Ah, a surpresa da boca que fonte se tornou! 
Ah, as palavras vermelhas sobre os amores fanados!  
Ó luas exiladas, ó moças esquecidas da ternura do abraço, 

ouço o rumor de sofrimentos longínquos, vozes, vozes 
que me falam da cova, do doce e rude jardineiro 
que ara, semeia e rega os largos campos dos mortos.  

Ó jovens que caminhais tristonhas como se chorásseis, 
ide recolher a inocência das manhãs e das rosas, 
antes que soprem do sul os ventos desordenados!
 

 

De Pé na Varanda Recordando
      
 
De pé na varanda recordando 
o menino a tosquiar o pêlo do carneiro 
flautas de um azul sobre a terra dos telhados 
enquanto parto adeus! aceno do cavalo 
logo as lavadeiras cantam a branda espuma 
e o focinho estremece do animal detido 
pelas rédeas na mão do menino no açude 
tranqüilo é o sol e o sonho é invertido 

e se alguém nasceu por fugir do silêncio 
nem por isso as palmeiras se cansaram 
de sua sombra de cravo tocado pelos dedos 
e louça da manhã disposta sobre a mesa 

adeus! que já desabam as folhas mamoeiros 
se partem à beira d’água enquanto indago e escuto 
a minha voz o canto de um inferno vencido 
pelo odor das mangas e o prostrado menino 

que soluça tombado sobre o magro joelho 
de um outro (velho) fácil é apear-se a cilha 
se aperta depressa e dóceis são os dias  
que a palavra recria como flores de cacto 

mas vivê-los? vivê-los nem as bilhas 
com sua clara frescura nos devolvem 
esta alegria de sonhá-los altos 
e não a areia pobre que nos deram 

e se pelo natal devoramos castanhas 
de que inverno nascem que dias adormecem 
em sua polpa branca é a camisa que veste  
o corpo solitário a beber o seu vinho 
  
espanco o animal o pranto suja o rosto 
salto o tear das flores até à vista! meus 
são os verões por viver e os campos de dores 
o sol não se disfarça nos olhos dos coelhos.
 

 

O Amor aos Sessenta
 
 
Isto que é o amor (como se o amor não fosse
esperar o relâmpago clarear o degredo):
ir-se por tempo abaixo como grama em colina,
preso a cada torrão de minuto e desejo.
Ser contigo, não sendo como as fases da lua,
como os ciclos de chuva ou a alternância dos ventos,
mas como numa rosa as pétalas fechadas,
como os olhos e as pálpebras ou a sombra dos remos

contra o casco do barco que se vai, sem avanço
e sem pressa de ausência, entre o mito e o beijo.
Ser assim quase eterno como o sonho e a roda
que se fecha no espaço deste sol às estrelas

e amar-te, sabendo que a velhice descobre
a mais bela beleza no teu rosto de jovem.
 

 

Ao Lado de Vera
 
 
                             1.             
      
            Usa o meu coração, se o teu já tens gasto, 
            feito a pedra de mó que a faca alisa, cava 
            e parece estender como massa de trigo 
            sobre a mesa molhada.  Usa o meu coração 

            como o trapo que limpa a sujeira das tábuas 
            e enegrece de pó, e se pui, e se esgarça,  
            se com ele se invertem este dia adverso  
            e esta noite perversa. Usa o meu coração    
             
            para nos esconder, como aos olhos as pálpebras,  
            do cansaço do tempo, do bolor nos retratos, 
            e jogar para os céus, ao abrir das janelas, 
            qual um sonho ou um parto, os pardais e os canários.  
  

                                       2. 

             
                        Pois estávamos tristes, 
                        apesar dos sorrisos, 

                        da tua mão na minha 
                        e das flores na sala. 

            E como havia em tudo 
                        um adeus sem destino, 

                        deixamo-nos ficar 
                        neste sofá florido. 

                        Mas, de súbito, um pássaro, 
                        suspeitando o jardim 

                        com seus grilos e rãs, 
                        trouxe o sonho de volta 

                        do que foi nossa alma, 
                        do que foi nossa carne, 

                        do que foi  a desfeita 
                        solidão pelo abraço. 

                        E disseste: —  Na pressa 
                        da alegria, retive 

                        o que sei era a morte 
                        no seu próprio casulo. 

                         
Livre agora, ela pasce 
                        as graminhas do dia, 

                        sobre as mesmas colinas 
                        em que fomos felizes. 

                        E eu te falo do amor 
                        que tem cãs — e enovelas 

             
            tardes, noites, manhãs, 
                        com seus sóis e estrelas, 

            tudo o que nos foi dado, 
                        o orvalho, o chuvisco, 

                        os cavalos no estábulo, 
                        o céu nos precipícios, 
             
                        as manhãs sobre as praias, 
                        as goiabas e as uvas, 
             
                        e este gato no encalço  
                        de algum grilo na rua,                                                  

e o que não se faz tarde, 
                        por ser fado cumprido,  

                         
e nos naipes jogados 
                        o que foi um destino. 

                        Mas no horto cerrado 
                        e na aberta campina, 

                        eu te aceno de perto 
                        como quem te imagina 

                        um deserto florido, 
                        num crepúsculo lerdo, 
                         
em que vais, quase finda,  
                        me sorrindo menina.  
             

                        3.  
  

E, então, 
como se estivéssemos a olhar do alto da varanda 
partirem os cabriolés com moças de anquinhas e rapazes de polainas, 
num cinema antigo  
ou na lembrança de adolescências que não foram as nossas, 
mas trazemos nas veias como os versos dos sonetos e as gravuras  
de balões de onde acenam, felizes, homens de cartola, 
lentamente vamos 
descendo a escadaria até à areia e aos canteiros de jardins de onde 
volto, 
o casaco nos ombros, os cabelos em asas,  
o olhar sofrido pelos barcos descascados, e as cercas puídas  
de cupim, e as crianças com ranho a escorrer pelos lábios,  
e o encardido da noite a se abrir, vacilante, 
enquanto a mão se alonga num bom dia  
ou adeus.      
                                    Pois também partes,  
a câmara a afastar-se do teu rosto que ocupava  
o retângulo inteiro da memória,     
os cílios molhados de saudade,  
os dentes a morderem o lábio inferior, o coração   
a ser cortado em tiras e refogado numa gordura escura 
como a terra, como o saco de coar o café que se derrama no caneco de                                                                                 lata dos vaqueiros,                          
como esta sala escura 
             em que the end fica em nossas pálpebras  
e sai conosco  
pelas calçadas iluminadas de tristeza e comovido 
beijo.  
E se agora  
procuro com a ponta dos dedos tocar-te a sobrancelha, 
é para refutar os que negam ao amor a eternidade,
é para refazer as pétalas das flores emurchecidas e o velo tosquiado
                                                                                                               dos carneiros,  
            e repor  
numa tarde que sabemos  
a luz limpa de depois da chuva e o verde de um silêncio   
em que vamos de mãos dadas  
para sempre.                                                                                        
  

                4.  
  

            Para que este amor, se o tempo abraça 
            o nosso abraço e o consome, e passam 
            as manhãs sem retrato, o sol ferido 
            pelo se pôr com o pousar das aves? 

            E para que, se, sendo encontro, parte 
            com nossos corpos e se faz viagem 
            solitária, obscura, ao céu do chão, 
            abrir de velas sobre um mar sem praias? 

            Mas quando o húmus se levanta em rosas, 
            a pergunta não mais chega às orelhas 
            e se dissolve no seu próprio eco,  

            pois sabemos o amor ser o que em nós  
            aspira ao oceano e às estrelas 
            e faz da morte um cisco sobre a mesa.