As urnas dividiram o povo brasileiro
Cunha e Silva Filho - especial para Entretextos
 
A premiada escritora Ana Maria Machado, agora colunista de O Globo, que substituiu Cacá Diegues, em artigos publicados aos sábados, lamenta a circunstância de que pessoas que admiramos (ver seu artigo “O dia seguinte,” O Globo, 18.10.2014), a quem respeitamos pelos suas qualidades intelectuais, ou por outros dotes ou valores, quando vistas no campo de preferências políticas, nos provocam perplexidades, ao percebermos que nada têm a ver com as nossas convicções, as nossas visões partidárias ou ideológicas.De alguma maneira, isso nos causa, lá no nosso interior, uma decepção (logo ele/a a quem tanto prezo!).
 
Nesse terreno de discussões, como que perdemos  um lado  nosso de lógica e de racionalidade e passamos a ver uma certa “realidade” derivada talvez de íntimos interesses que não poderiam ser perdidos sob pena de sofrermos consequências que abalariam o nosso conforto e as nossas conquistas materiais. Por exemplo, quem, no passado, fosse monarquista, não desejaria uma mudança para o regime republicano, ou seja, perder os direitos e as prerrogativas que aquele sistema de poder lhe concedia. 
 
Essa postura, de alguma forma, impede o indivíduo de enxergar, com isenção, o outro, o diferente no terreno das ideias e visões na condução do governo ou numa forma de administrá-lo. É nesse ponto que somos tomados pelo proselitismo, nos tornamos sectários e não vemos senão o lado errado e o espelho invertido ou estilhaçado, em que o outro, na condição de mero eleitor, transmuda-se, em tese, em adversário e, para agravar mais o quadro das divergências, o partido do qual discordamos torna-se objeto de nosso escárnio, de nosso desprezo. 
 
Essa alteridade dos agentes políticos, protagonizados como candidatos de um partido, se anula, dando origem a refregas intoleráveis. Os candidatos são objeto de distorções, mentiras, manipulações seja dos marqueteiros, seja dos eleitores que não abrem mão de suas posições extremadas, gerando a “cegueira,” a ofensa e o vilipêndio. 
 
Todos os podres da vida pregressa dos candidatos são escancarados  publicamenatae e, nessa agressividade mútua, não há medidas nem limites. Tudo vale, verdade ou dissimulação, no caldeirão dos ataques com fotos, vídeos, textos, cartoons, desconstruindo (é o termo em moda) a pessoa política e a personalidade de cada candidato. Valem até as palavras chulas, as fotos deformadoras das expressões fisionômicas, seja da Dilma, seja a do Aécio, para a Presidência, seja a do Pezão e do Crivela, para governador. Não há quase o meio termo, ou são oito ou oitenta. Neste lamaçal com setas venenosas atiradas de ambas as partes, o eleitor comum vê-se enredado num labirinto de uma saída para um opção conclusiva sobre a polarização incandescente.
 
Entretanto, essa agressividade sectária e anuladora da alteridade, no país, remonta há décadas na história política brasileira. Nas campanhas políticas do tempo da UDN e do PSD, intervalos de maior agressividade daquelas  campanhas, não só havia brigas entre partidários na condição de eleitores, mas desavenças violentas entre os candidatos que vasculhavam os mínimos detalhes da vida privada de um candidato, até mesmo a sua opção sexual ou a sua suposta condição de corno convencido.
 
Os candidatos, em campanhas pelo interior dos estados, nos comícios em praças públicas ou em carrocerias de caminhões estacionadas em lugares centrais das cidades, desancavam seus opositores, muitas vezes acompanhados de capangas disfarçados no meio da população a fim de garantirem a integridade física dos candidatos. A violência se estendia entre famílias de partidos antagônicos a tal ponto que seus membros não se falavam e se tornavam inimigos durante anos, se não até à morte. Quando mais virulentas, iam às vias de fato e mesmo a homicídios entre opositores.
 
Não houve, por conseguinte, melhoria nos ânimos exaltados de hoje por parte dos eleitores. Basta ver o que se posta no Facebook e o que se afirma e se diz dos candidatos. Impera o reino das aleivosias, do achincalhe. Entre as sujeiras do petismo e a empulhação dos tucanos, fica, assim, difícil a escolha. 
 
Com os avanços da tecnologia e dos meios virtuais de comunicação, uma denúncia daqui, outra dali, são suficientes para abalar a consciência dos eleitores. O que é mais curioso e intrigante, a campanha política é uma luta de foice, com já afirmei alhures, a qual semelha, em muitos ângulos, às divergências religiosas, de futebol e de escola de samba e, se forçarmos a barra, há até uma dose de carnavalização, de espetáculo burlesco, de pantomima e momice. A semelhança se sustenta pelo fanatismo e, por este motivo, espinhosa é a tarefa de fazer um eleitor mudar de opinião. Ele se torna empedernido, intratável algumas vezes, pois, segundo ele, a verdade e a certeza estão na suas convicções formadas ao longo do tempo.
 
E não é a diferença social, econômica, ou de nível de escolaridade, não é a separação entre letrados e não letrados, que vai fazer alguém mudar a sua opção. Se alguém buscar um pouco de racionalidade na consciência do eleitor, decerto não  a encontrará. Isso se deve a um componente imponderável: cada eleitor tem (ou não) a sua formação ético-moral, as suas conveniências, os seus interesses inconfessos (ou confessos) individuais os seus compromissos classistas ou de corporativismos. As diferenças, as alteridades, diante dessas contingências, não se contam, i.e., se diluem e perdem a sua grandeza, quando não, se transformam em contundente polêmica.