A Favourite Dog, 1822, (Fanny, O Cachorro Favorito). (courtesy of the Trustees of Sir John Soane’s Museum, London/Divulgação)
A Favourite Dog, 1822, (Fanny, O Cachorro Favorito). (courtesy of the Trustees of Sir John Soane’s Museum, London/Divulgação)

Reginaldo Miranda[1]

Histórias de amor, lealdade e fidelidade extrema entre cães e humanos impressionam ao longo do tempo. Nossa percepção ainda não alcançou entender a pureza, sinceridade e fidelidade desses pequenos amigos que dedicam toda sua vida para nos amar. Faz pouco mais de quinhentos anos que o polímata Leonardo da Vinci, um dos maiores artistas do Renascimento, em suas elucubrações assim concluiu: “Chegará o tempo em que o homem conhecerá o íntimo de um animal e nesse dia todo crime contra um animal será um crime contra a humanidade”.

Entre os animais, não há dúvida de que o cão manifesta emoções incompreensíveis para alma humana. Em sua linguagem tosca e vida rude, disse-me um vaqueiro do alto sertão que “um homem com um cachorro não está sozinho”. Em sua vida de ermitão na lida campeira, bem sabe ele o que diz.

Porém, os exemplos não são de hoje, varando gerações e transcendendo o tempo. Há cerca de trinta séculos, quando deflagrou-se a Guerra de Tróia, partiu Ulisses da ilha de Ítaca, antiga Grécia, para os campos de batalha. Na praia, de olhos fitos no mar, saudoso ficou Argos, seu jovem cão, que até então o acompanhava nas caçadas, compartilhando alegrias e tristezas. O guerreiro Ulisses demorou vinte anos para retornar à sua casa, encontrando-a invadida por usurpadores, pretendentes à mão de sua esposa Penélope, considerada viúva. Para reconquistá-la disfarçou-se de mendigo, único jeito para surpreender os usurpadores no interior de seu palácio. Ninguém o reconheceu porque apenas olhavam para suas vestes maltrapilhas. Somente Argos, o velho cão, fiel amigo, que passara aqueles vinte anos mirando o mar, em permanente vigília pelo seu tutor, o reconheceu. Ao aproximar-se, Ulisses o enxergou abandonado ao lado do palácio, deitado sobre um monte de esterco, magricela, quase cego e cheio de parasitas. Porém, ao sentir seu cheiro o fiel amigo teve forças para abaixar as orelhas e abanar o rabo, antes de falecer expirando um último suspiro. Ao passo que o velho guerreiro, sem poder tomá-lo nos braços, senti-lo num último abraço, para não despertar atenção, passou ao largo marejando os olhos e deixando verter uma lágrima que não fora vista nem no furor das batalhas.  As emoções desse reencontro, inspiraram o poeta Homero a compor os mais belos versos de sua épica obra, Odisseia.

Exemplos não param, cada leitor podendo rememorá-los. Há um século, exatamente em 1924, teve início uma história, no Japão, que até hoje comove. O professor Hidesaburo Ueno, adotou um pequeno cão da raça Akita Inu, a quem deu o nome de Hachiko, também apelidado Hachi. Desde então, este filhote integrou-se ao seu cotidiano, fazendo parte de sua rotina no trajeto de casa à vizinha estação ferroviária de Shibuya, em Tóquio. Nesta última, Hachi o aguardava ansiosamente, no retorno diário do trabalho. No entanto, em maio de 1925, uma tragédia abala aquela relação, quando falece o professor em uma de suas viagens. Hachi tinha apenas dezesseis meses de idade, mas protagonizou uma história de devoção, lealdade e fidelidade que ainda hoje desperta emoções. Por anos a fio, dia após dia, enfrentando todas as adversidades, permaneceu incansavelmente visitando aquela estação ferroviária à espera de seu amado tutor. Com o passar do tempo aquele gesto despertou atenção e comoveu transeuntes. Culminou com uma reportagem de jornal, no ano de 1932. Despertou o País para essa demonstração de fidelidade e lealdade extrema. Seguiram-se-lhe doações de alimentos e atraiu visitantes de várias partes, todos querendo testemunhar in loco aquele gesto de amor, lealdade e fidelidade canina. Poemas e haicais foram-lhe dirigidos e, em 1934, uma estátua do cão foi erguida naquela estação, ainda hoje podendo ser vista por moradores e turistas. Sua morte, em março de 1935, despertou comoção e seus funerais atraíram multidão, despertando orações de monges budistas e discursos emocionados, enfatizando devoção e amor. Com o impacto transcendendo fronteiras, em 2009, essa história foi retratada no filme Sempre ao seu lado (Hachi: A Dog’s Tale), dirigido por Lasse Hallström e estrelado por Richard Gere. Difícil é assistir a esse filme sem se emocionar, sobretudo porque a produção capturou a essência da lealdade e a espera incansável do cão por seu dono, que o espera por toda a vida. Durou dez anos essa espera, tempo que distou entre a morte de ambos.

Sensível a essas histórias, vejo exemplo em um cachorro amigo chamado Romeu. Foi adotado por minha filha primogênita. Chegou pequenino e foi crescendo em nosso apartamento, até que sua permanência foi ali inviabilizada. Em seguida, minha filha precisou mudar-se para outra cidade. Levado para uma casa de campo, Romeu recebe nossa visita toda semana, quando extravasa suas emoções. Embora um cuidador lhe leve alimentação diária, ele não se entrega ao mesmo, nos esperando ansiosamente. Faz festa quando chegamos. Não há dúvidas de que nos escolheu para tutor. Permanece por dias à espera. Distingue à distância o roncar do motor de nosso veículo, saltando contente antes de nos avistar. Confesso que esse amigo desperta características descritas nesses outros exemplos e nos faz, a cada dia, conhecer seu íntimo. É um exemplo de amor sem limites, sem segundas intenções, sem pedir nada em troca. Argos, Haichi e Romeu são exemplos de amor, lealdade e fidelidade, ao tempo em que desafiam nossa compreensão para entender a medida desses sentimentos.

 


[1] REGINALDO MIRANDA, advogado especialista em Direito Constitucional e em Direito Processual, foi membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI, da Comissão de História, Memória, Verdade e Justiça, assim como cofundador e presidente da Associação de Advogados Previdenciaristas do Piauí. Representou a OAB-PI na composição da Comissão de Estudos Territoriais do Estado do Piauí – CETE (17.2.2021 – 31.1.2023). É membro da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. Contato: [email protected]