A segunda vez, melhor que a primeira
Em: 11/06/2009, às 08H17
A segunda vez, melhor que a primeira
Roberto Mendonça*
Eu me chamo Roberto e, nos meados de 1966, ingressei na Polícia Militar. Meses depois, fui indicado para proteger o desembarque de um ilustre passageiro no Ponta Pelada (denominativo do aeroporto que, hoje e no mesmo local, serve à Base Aérea). Aliás, outro colega também foi designado para a missão, seu nome era Carlos. Se você juntar esses dois nomes-de-guerra, decifra o nome do ilustre visitante.
Esse mesmo. Em 1º de setembro, desembarcava aqui o cantor Roberto Carlos, que já arrebentava os padrões musicais do País, com “É uma brasa, mora!”. Na época, o avião vindo do Sul aterrissava aqui ao final da tarde, com todos extenuados, após um dia de viagem. Antes do horário, assumi o policiamento, pois o colega conseguiu uma dispensa. Os fãs de todas as idades foram chegando, gente de todas as situações financeiras, até juízes e empresários.
Braza ou brasa, eis a questão!
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O “rei da jovem guarda” iria cantar em dois locais: no “Circo Americano”, montado na praça da Praça 14, em frente à igreja de Fátima, então uma área desocupada. Apesar do tamanho do circo, “armado sobre doze torres”, era tido por um local desprezível. Para minimizar a situação, entrevistado em São Paulo, o próprio cantor tratou de desfazer o embaraço. Qualquer que fosse o entendimento, porém, tratava-se do único local compatível para acolher numeroso público. Dá para imaginar o nosso “orgulho”, às vésperas da instalação da Zona Franca? Depois do circo, o espetáculo seria no Cheik Clube, ali mesmo onde em nossos dias uma academia mantém a designação. Também era diminuto o espaço, mas...
De volta ao Ponta Pelada. Estabeleci um cordão de isolamento no saguão de desembarque, esperando facilitar o trânsito do cantor e demais viajantes. Na hora prevista, o avião estaciona e os passageiros começam a desembarcar. Cada um que passava, e nós conhecíamos a todos, era saudado e interrogado sobre o ilustre companheiro de viagem. Cada confirmação aumentava a vibração da platéia, porém, de minha parte, só aumentava a inquietação. Roberto foi o último a desembarcar; e obrigado a caminhar desde o avião até o desembarque, acompanhado dos empresários locais, tendo à frente João Bosco Ramos de Lima, então radialista, falecido senador.
Aguardei o visitante à porta, junto ao policiamento. Quando ele chegou, aproximei-me, e ele, enfático, me solicitou: “Por favor, não deixe ninguém me tocar”. Não preciso explicar o motivo dessa solicitação. Prometi cumprir o solicitado e, ao seu lado, tentamos atravessar o saguão em direção ao carro. Não foi fácil. Logo o cordão de isolamento foi rompido e os PMs tiveram que portar a “borracha” (cassetete) para facilitar a circulação. Virou um pandemônio, mas o jovem cantor conseguiu sair do aeroporto, são e salvo. Desfeita a agitação, logo recebi algumas queixas contra a atuação estabanada dos policiais; lembro bem de uma avó, perguntando pelos seus netos. Não me recordo a resposta, mas deve ter sido qualquer coisa como “a senhora deveria estar em casa”. Somente hoje compreendo a euforia promovida pelo “esse rapaz desajustado”, na definição de um anônimo professor local, intrigado com a ousadia da “jovem guarda”. Poderia ter recolhido o cantor à porta do avião, frustrando os fanáticos manauaras; mas disso não teria como me penitenciar.
No Circo Americano, a polícia, por minha orientação, mudou a estratégia. A questão maior era a presença de fãs à porta do circo. Para ludibriar esse entusiasmo, concentramos um forte policiamento no local, orientando o motorista do cantor a se dirigir pelos fundos. Assim, quando o show começou com o assovio padrão do “rei” e o rebolado provocativo do iê-iê-iê, a turma do “sereno”, enganada pela polícia, mandou esta e tudo mais “pro inferno”. Lá dentro houve tudo o que um circo podia permitir; o delírio de jovens e adultos foi impressionante, acompanhado de cenas de desmaio com direito a retirada nos braços de bombeiros, especialmente de fanzocas. Entre gritos e delírios, o espetáculo foi do agrado.
Roberto Carlos já conhecia Manaus; na primeira vez (talvez 1965) levou um cachê de 150 mil cruzeiros – “e olhem lá”, informa uma coluna jornalística, comparando que desta vez “a cotação do menino está subindo, ou é inflação”: 12 milhões de cruzeiros. Foram tantas as ligas retiradas do dinheiro, após conferi-lo, e que o cantor colocou nos braços, que, conta uma lenda urbana, a juventude adotou o modismo.
A festa no Cheik Clube pertencia à grã-finagem, convidada “para assistir ao maior show do ano: o homem do calhambeque”. Havia duas maneiras de ingresso: apresentação da carteira social e recibo nº 8 (agosto) para os sócios, e aquisição de mesas vendidas pelos diretores de plantão. A sociedade se divertiu com prazer e sem notícias desagradáveis, acolhendo o garoto que começava a encantar o Brasil, embalado pela “popularidade maior que a de Jesus Cristo” dos britânicos Beatles.
Manhã seguinte, muito bem recompensado, o futuro “Rei” embarcou de regresso, sem necessidade de policiamento. Os fãs dormiram satisfeitos, sonhando com um breve regresso. Eu também dormi bem, sonhando que uma multidão me aplaudia; no entanto, ao ser despertado pelo clarim do quartel, lembrei-me que os aplausos foram para o Roberto Carlos. Mas, valeu!
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Rebeldia sem causa, simpatia conservadora.
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(*) Roberto Mendonça é coronel da reserva da Polícia Militar do Amazonas, pesquisador e autor de livros sobre a história do Amazonas.