Ilustração: Páginas do livro De Humani Corporis Fabrica Libri Septem, de Andreas Vesalius, publicado em 1543. Pelo que consta, sua capa é antropodérmica.
Ilustração: Páginas do livro De Humani Corporis Fabrica Libri Septem, de Andreas Vesalius, publicado em 1543. Pelo que consta, sua capa é antropodérmica.

[Cláudio Trasferetti]

Ainda no rescaldo da leitura de Histórias Naturais (Ficções), livro de Marcílio França Castro, comecei a refletir sobre uma de suas ficções, que traz à tona o assunto de livros encadernados com capas antropodérmicas. Essa “ficção” revisita a história tida como verídica de um crime passional famoso, que ficou conhecido como “Red Barn Murder”, e “The Trial of Corder”, o livro escrito sobre ele pelo jornalista James Curtis (seria essa reportagem transformada em livro uma avó do “A Sangue Frio” de Truman Capote?). Diz a lenda que um dos exemplares desse livro foi encadernado com a pele curtida do próprio assassino, que foi executado por enforcamento.

Intrigado pela excentricidade desse tipo de encadernação, li alguns textos sobre o assunto que confirmam a existência de quantidade não desprezível de livros com capas de couro humano. Há alguns exemplares da Bíblia, mas a maior quantidade de livros assim encapados é de tratados de medicina provavelmente por conta do fácil acesso que tinham os médicos a esse material. Há também alguns casos que têm a ver com criminosos, prisioneiros, como é o caso do “The Trial of Corder”, ou escravizados. Li que um condenado à morte pediu explicitamente que seu livro de memórias fosse encadernado com sua própria pele e sobre um médico que, ao autopsiar um corpo feminino, reconheceu a atriz que viu atuando numa peça de Thomas Corneille chamada “Le Baron d´Albikrac” e, com a intenção de prestar-lhe uma homenagem póstuma, encadernou um exemplar dessa peça com sua pele curtida. Esses relatos me fizeram pensar num outro livro que li recentemente: “O Museu do Silêncio”, de Yoko Ogawa.

Acontece que, por questões relacionadas à dignidade da pessoa humana, algumas instituições que abrigam livros com esse tipo de encadernação começaram a divulgar que irão buscar uma destinação final respeitosa a suas capas (será que pensam num enterro digno ou algo assim?). Alguns especialistas entendem que não se deve acabar com a prova material do que aconteceu a essas pessoas cujas peles foram usadas em encadernações e, com isso, acendeu-se mais um dilema, que, percebo guardar relação com outras tentativas de apagamento histórico ou literário que andam acontecendo mundo afora.

Fico meio perdido nesse assunto, mas tendo a concordar com Megan Rosenbloom, uma especialista no assunto que condena a destruição de artefatos históricos e a imposição de sensibilidades do século 21 a objetos de diferentes épocas e contextos. Diz ela: “Devemos tratar esses livros da maneira mais respeitosa possível, mas, ao mesmo tempo, tentar não enterrar, literal e figurativamente, o que aconteceu com essas pessoas. É arrogância pensar que chegamos ao fim da evolução da forma como pensamos sobre os restos humanos”.