Mário de Andrade (de óculos), em companhia de Candido Portinari, Antonio Bento e Rodrigo Melo Franco, em 1936.
Mário de Andrade (de óculos), em companhia de Candido Portinari, Antonio Bento e Rodrigo Melo Franco, em 1936.

Ode ao Burguês

Mário de Andrade

"Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,

o burguês-burguês!

A digestão bem-feita de São Paulo!

O homem-curva! o homem-nádegas!

O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,

é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!

Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!

que vivem dentro de muros sem pulos;

e gemem sangues de alguns mil-réis fracos

para dizerem que as filhas da senhora falam o francês

e tocam os "Printemps" com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!

O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!

Fora os que algarismam os amanhãs!

Olha a vida dos nossos setembros!

Fará Sol? Choverá? Arlequinal!

Mas à chuva dos rosais

o èxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!

Morte às adiposidades cerebrais!

Morte ao burguês-mensal!

ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!

Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!

"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?

— Um colar... — Conto e quinhentos!!!

Mas nós morremos de fome!"

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!

Oh! purée de batatas morais!

Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!

Ódio aos temperamentos regulares!

Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!

Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!

Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,

sempiternamente as mesmices convencionais!

De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!

Dois a dois! Primeira posição! Marcha!

Todos para a Central do meu rancor inebriante

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!

Morte ao burguês de giolhos,

cheirando religião e que não crê em Deus!

Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!

Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fú! Fora o bom burgês!..."

ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. São Paulo: Martins Editora, 1955. p. 44-45.

 

Poemas da Negra

Mário de Andrade

a Cícero Dias

I

Não sei por que espírito antigo

Ficamos assim impossíveis…

A Lua chapeia os mangues

Donde sai u favor de silêncio

E de maré.

És uma sombra que apalpo

Que nem um cortejo de castas rainhas.

Meus olhos vadiam nas lágrimas.

Coberta de estrelas,

Meu amor!

Tua calma agrava o silêncio dos mangues.

II

Não sei si estou vivo…

Estou morro.

Um vento momo que sou eu

Faz auras pernambucanas.

Rola rola sob as nuvens

O aroma das mangas.

Se escutam grilos,

Cricrido continuo

Saindo dos vidros.

Eu me inundo de vossas riquezas!

Não sou mais eu!

Que indiferença enorme. ..

III

Você é tão suave,

Vossos lábios suaves

Vagam no meu rosto,

Fecham meu olhar.

Sol-pôsto.

É a escureza suave

Que vem de você,

Que se dissolve em mim.

Que sono…

Eu imaginava

Duros vossos lábios,

Mas você me ensina

A volta ao bem.

Mário de Andrade