2 poemas de Mário de Andrade
Em: 30/06/2024, às 21H06
Ode ao Burguês
Mário de Andrade
"Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o èxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
— Um colar... — Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!"
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fú! Fora o bom burgês!..."
ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. São Paulo: Martins Editora, 1955. p. 44-45.
Poemas da Negra
Mário de Andrade
a Cícero Dias
I
Não sei por que espírito antigo
Ficamos assim impossíveis…
A Lua chapeia os mangues
Donde sai u favor de silêncio
E de maré.
És uma sombra que apalpo
Que nem um cortejo de castas rainhas.
Meus olhos vadiam nas lágrimas.
Coberta de estrelas,
Meu amor!
Tua calma agrava o silêncio dos mangues.
II
Não sei si estou vivo…
Estou morro.
Um vento momo que sou eu
Faz auras pernambucanas.
Rola rola sob as nuvens
O aroma das mangas.
Se escutam grilos,
Cricrido continuo
Saindo dos vidros.
Eu me inundo de vossas riquezas!
Não sou mais eu!
Que indiferença enorme. ..
III
Você é tão suave,
Vossos lábios suaves
Vagam no meu rosto,
Fecham meu olhar.
Sol-pôsto.
É a escureza suave
Que vem de você,
Que se dissolve em mim.
Que sono…
Eu imaginava
Duros vossos lábios,
Mas você me ensina
A volta ao bem.
Mário de Andrade