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Os fatos são sonoros, mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro que me impressiona.
Clarice Lispector
A loucura se manifestara aos poucos. Um sopro gelado na nuca, pensamentos sem sentido e uma angústia estranha que ia e vinha sem avisar. Tudo, no entanto, perfeitamente, explicável, nada com o qual se preocupar. Até que as vozes começaram.
Vozes mansas e furiosas. Vozes infantis e velhas. Vozes femininas e masculinas. Vozes, dia e noite.
No início, ele acreditou se tratar de algum problema de audição. Foi ao médico. Após ser examinado, o diagnóstico:
- Seus ouvidos estão bem. Não encontrei nenhum problema.
- Mas, doutor, e as vozes?
- Não é nada, com o tempo esse incômodo desaparece. Mantenha os ouvidos bem limpos e pingue essas gotas três vezes ao dia – concluiu o médico, com um sorriso complacente e um gesto de despedida.
Na saída do consultório, ele levava na mão a receita do remédio. Dentro de sua cabeça as vozes haviam se multiplicado. Sem ânimo, amassou a folha de papel com a prescrição médica e a jogou no lixo. De imediato, ouviu um alarido de contentamento.
Os dias foram passando e, apesar do medo e da angústia crescentes, não quis ir a outro médico. Resolveu tentar algo diferente.
Começou memorizando longos versos que depois repetia em voz bem alta. Primeiro sozinho, depois para amigos e, em seguida, para os amigos dos amigos. Suas declamações tornaram-se famosas e, sem nem mesmo perceber, transformou-se em um excepcional recitador. Por todos os lugares pelos quais passava as pessoas pediam:
- Que venha o homem dos versos!
E ele declamava uma, duas, tantas vezes quantos quisessem. Contudo, nem mesmo assim as vozes se calaram. Ao contrário.
Cada vez mais agitadas e insistentes, eram elas que determinavam quais poemas deveria recitar e, para seu pavor, com frequência, criavam seus próprios versos. Assim, além de declamador, transformou-se em poeta.
No entanto, esse sucesso não o deixava feliz. Não sentia fome e nem sono. E a cada dia se tornava mais e mais solitário. As vozes eram a sua única e permanente companhia. E em algum momento – nem mesmo ele sabia quando –, desistiu de combatê-las e passou, inclusive, a conversar com elas. Daí em diante o mergulho na loucura foi completo. As vozes mandavam e ele apenas obedecia.
Renunciou a uma vida normal.  Andava pelos cômodos de sua velha casa – abarrotados de bugigangas que as vozes o obrigavam a comprar – sempre em meio a discussões, incompreensíveis para qualquer um que se propusesse a ouvi-las. Os poucos amigos se afastaram e até os convites para recitar diminuíram. E um dia, simplesmente, ninguém mais se lembrava do poeta que falava sozinho.
A casa sempre fechada, e o seu excêntrico morador, por algum tempo não chamaram a atenção da vizinhança. Se ele desejava o isolamento, esse era um problema dele e ninguém tinha nada a ver com isso. Até que perceberam o cheiro. Um fedor insuportável. Assustados e esquecendo o velho lema, “Viva e deixe viver”, os vizinhos decidiram chamar a polícia.
Os policiais, depois de batidas insistentes, viram-se obrigados a pôr a porta abaixo. O odor nauseabundo dentro da casa fez com que os de estômagos mais fracos recuassem para a rua. No interior a destruição era total. Móveis quebrados, roupas rasgadas, lixo acumulando-se pelos cantos, espaços vazios de vida, de onde até mesmo os ratos haviam fugido. Contudo, o mais impressionante era o silêncio. Um silêncio pesado e úmido. Um silêncio maior do que a própria morte.
Não foi preciso procurar muito. Eles o encontraram no quarto, deitado na cama, de olhos bem abertos, fitando um ponto do teto onde existia apenas uma mancha escura de umidade. As mãos crispadas agarravam com força o colchão. A boca escancarada já não emitia nenhum ruído. No criado mudo, ao lado da cama malcheirosa, entre o pó e a sujeira, uma folha amassada. Nela apenas poucas linhas haviam sido escritas; era o início de um novo verso.