ELMAR CARVALHO

 

Minha mulher contou-me que, poucos dias atrás, quando foi efetuar o pagamento de uma compra, numa das lojas da rua Álvaro Mendes, ouviu numa fila, perto da sua, uma senhora idosa dizer para uma conhecida, de forma repetitiva e veemente, que desejava morrer. Aduziu que rezava diariamente para que Deus a levasse logo, que abreviasse os seus dias, que já não aguentava mais sua vida. Parecia não querer guardar segredo desse seu desejo um tanto raro, pois algumas outras coisas falou em voz baixa, apenas o suficiente para sua interlocutora ouvir.

 

Segundo a Fátima, a senhora que dizia ansiar pela morte deveria ter uns 65 anos de idade, ao passo que sua colega deveria andar em torno dos 60. A mais idosa, após efetuar o seu pagamento, foi logo embora. A outra disse, a título de explicação, dirigindo-se a minha mulher:

- Olhe, a gente deve ter paciência com essas pessoas, deve ouvi-las, procurar entendê-las... Que Deus perdoe uma pessoa assim!

A Fátima assentiu, com um aceno de cabeça, e nada mais soube do caso. Fez-me esse fato lembrar a história da sibila de Cumas, que tendo ganho uma vida longuíssima, não recebeu, contudo, a graça da eterna juventude – ela que por sua beleza arrebatara de paixão o deus apolíneo – e foi envelhecendo e se tornando cada vez mais feia. Já toda encarquilhada, engaiolada em profunda tristeza, quando lhe perguntavam o que mais desejava, respondia lacônica e melancolicamente:

- Quero morrer.

 

Fico a pensar o que levaria uma pessoa a alardear, em alto e bom som, sem nenhum recato, que gostaria de morrer, quase como se estivesse a fazer propaganda de seu sofrimento, de seu desapego à vida. Ao que me parece, os grandes sofredores, os depressivos, não fazem estardalhaço de sua dor; antes, guardam profundo silêncio em torno das causas de sua tristeza. A sua melancolia se reveste de enorme silêncio e absoluta discrição, recolhidos ao seu canto, longe do sol e do burburinho das ruas. E esse recolhimento lhes agrava ainda mais o sofrimento, que lhes empurra para a lassidão e a alcova, em legítimo círculo vicioso.

 

Dizem que o verdadeiro suicida não faz alarde de suas intensões. Um belo dia, quando os amigos e parentes menos esperam, ele se mata. Pelo que me consta as causas mais frequentes de suicídio são dívida, doença dolorosa e incurável, paixão incorrespondida, vergonha por algo que macula a honra e a tenebrosa depressão, que pode ser considerada o mal deste século, ao menos de suas primeiras décadas.

 

Uma moça, que não desejo situar, nem no tempo e nem no espaço, quando sofria uma desilusão amorosa, real ou imaginária, tomava vários comprimidos analgésicos; sofria uma indisposição e era levada para o hospital, onde se recuperava sem maiores complicações. Dizia haver tentado matar-se. Na verdade, tudo não passava de simulação, para comover o amado ou o amante de plantão, motivo da sua encenação tragicômica, mas com uma dosagem maior de comicidade. O outro pretenso suicida, de que ouvi falar, subiu em um tamborete, fez um laço em velha corda de tucum, amarrou-a em um caibro, e saltou do improvisado cadafalso. A corda, como era de se esperar, partiu-se, e ele rolou dramaticamente pelo assoalho. Levantou-se indignado, e exclamou em altos braços, em sua simulação macabra e hilária ao mesmo tempo:

- Miséria, diabos, nem para morreu eu tenho sorte!...

Nunca se lhe soube de nenhuma outra tentativa.

 

Por cúmulo de lamentável coincidência, quando eu já estava no meio do parágrafo anterior, recebi um telefonema do historiador e advogado Reginaldo Miranda, presidente da Academia Piauiense de Letras, dando-me a infausta notícia de que o confrade William Palha Dias falecera há pouco. Era ele um escritor de mérito. Publicou livros na seara da historiografia, do conto, da novela, do romance e da crônica. Causeur admirável, era dotado de saudável bom-humor, detendo um vasto repertório de piadas e anedotas, algumas talvez de sua lavra, outras de que fora protagonista, com as quais ilustrava sua atraente conversação. Foi um juiz probo, honrado e brioso, que nunca se dobrou às conveniências dos poderosos. Ao contrário das três sibilas desta nota, Palha Dias era um homem vital, enérgico, com grande capacidade laborativa, comprometido com a vida, com a arte e com a cultura.

 

Nos últimos dias estive pensando, repetidas vezes, em convidar o magistrado e acadêmico Oton Lustosa para tirarmos uma fotografia ao lado do Dr. William Palha Dias. Não faz muito tempo, lembrava o professor Manoel Paulo Nunes, em sessão da Academia, que nós três fomos juízes de sua terra, Regeneração, e depois ingressamos na APL. Lembro-me que, alguns anos atrás, salvo engano no dia da posse acadêmica da Teresinha Queiroz, tiramos essa foto, mas dela não tenho cópia. Muito me honraria tê-la em minha casa, ou no gabinete do juízo. Agora, já não mais posso realizar o meu desejo. Como diria Drummond, perdi o bonde e a esperança, e já não poderei rever o amigo Palha Dias, que há de permanecer no coração e na memória de nós todos, seus amigos e admiradores.

Montagem da foto: site Propornaíba