Visita de um aposentado


                         Encontrava-me, naquela manhã, para matar um pouco a saudade. De quê? Havia mesmo saudade ou outra espécie de sentimento que me levava àquele lugar no qual trabalhei quase treze anos? Passei pela entrada com cartão magnético só depois de duas tentativas. Nos tempos de trabalho sempre acontecia de o cartão magnético não me liberar a entrada senão na segunda ou, às vezes, na terceira tentativa. Dizem que se a gente o coloca no bolso da calça, junto de um molho de chaves, desaparece a força magnética do cartão. Não sei se isso é verdade.       Também não entendo nada dessas coisas eletrônicas. Nem sei como aprendi o feijão com arroz do computador. Puxei a papai que nem mesmo sabia como ligar um rádio, embora fosse uma pessoa culta, inteligente, bom aluno em todas as matérias, mas lidar com coisas práticas não era com ele, não. Talvez fosse pela vontade de me comunicar na Internet.
                       Dentro da sala de contabilidade, vendo meus colegas que ainda estavam trabalhando, senti um conforto enorme. Ah, não mais terei que obedecer a horários e a chefes imediatos. Sou livre e desimpedido. A sala era ampla com mesas distribuídas, em fileiras, formando um retângulo. Nem todas estavam ocupadas com funcionários.Um pouco afastada, encontrava-se a mesa do chefe da seção. Ele lá estava sentado, de cabeça pra baixo lendo algum relatório. Sua fisionomia denotava preocupação. Nunca fui com a cara dele depois de tantos anos enfrentando-o todos os dias úteis da semana, exceto durante os períodos de férias, o que para mim era um alívio.
                     Quando cumprimentei a todos, ao entrar na sala, percebi que ele levantou a vista, olhou ligeiramente pra mim e esboçou um cumprimento mais com o olhar do que com palavras. Não liguei pra isso. Já sabia que seria sempre assim. Nunca iríamos mesmo ser amigos verdadeiros nem íntimos. Nossos espíritos não combinavam. Questão - diziam meus amigos espíritas -, de reencarnação. Sei lá? Nunca aprofundei leituras espíritas. Ainda andei lendo um livro que me recomendaram, O livro dos espíritos, conjunto de princípios do que Allan Kardec (1804-1869) denominava de Filosofia Espiritualista. Preferi a versão inglesa feita por Anna Blackwell, porque gostava muito de ler no original dessa língua, só para praticar a compreensão escrita e também porque houve uma época em que procurei conhecer alguma coisa sobre essa área de conhecimento espiritual.
                    Dentro da seção, fui conversar com um dos colegas com quem me dava muito bem, se bem que não era uma amizade muito estreita, mas dava pro gasto. Trocávamos certas confidências, nos abríamos um para o outro em assuntos mais de problemas de saúde, pois Carlos sofria de labirintite e eu provavelmente também. Na verdade, foi ele que me sugeriu que fosse procurar um médico para ver se tinha mesmo essa doença. Nunca fui ao médico. No entanto, de vez em quando, sinto sintomas que, de acordo com a experiência de meu amigo, devem ser de crise de labirintite. Até uma vez, passando mal, tive que ser consultado por uma médica numa emergência de hospital. Ela me diagnosticara apenas subida de pressão. Era hipertenso. No entanto, a sensação que tive em casa era de que ia apagar, morrer mesmo ali em pleno lar.
                Era horrível aquela sensação de que não conseguia ficar direito em pé, nem sentado. Parecia que me faltavam as pernas, a posição ereta do corpo. Aquela sensação de que fosse desmaiar era insuportável. No meio da tonteira, havia também um pouco de vontade de vomitar, sensação de náusea na boca. A médica me receitou dois remédios para que tomasse um de doze em doze horas e o outro, de oito em oito horas. Me falou que começasse pelo remédio de doze em doze horas, me recomendando que, após tomar o primeiro dos remédios, ficasse em repouso, na cama. A tonteira iria passar dentro de aproximadamente duas horas, me assegurara a médica. 
              Por falar em tonteira, me lembro daquela noite em que acordei estranho na madrugada, com a cabeça pesada. Da minha cama fiquei olhando para o quarto quase escuro não fosse um pouco de luz que entrava pela vidraça da janela na pequena parte da cortina afastada pro lado esquerdo, enquanto minha mulher dormia um sono tranqüilo. Não a quis acordar pra não preocupá-la, pois teria um dia estafante de trabalho na escola, na manhã seguinte. Tudo passava a rodar, a rodar, a rodar... O quarto, as paredes, o teto, os armários, a estante-mesa do computador. Fiquei apavorado, com medo de que era o final dos meus dias, Segurei-me às travezinhas daquela bela e decorada cabeceira da cama. Com receio de que o rodopiar era mais forte do que eu, me mantive firme, segurando-me às travezinhas curvilíneas da cabeceira da cama.
            Se não o fizesse, tinha certeza quase de que seria levado para o espaço, suspenso no ar, tragado até mesmo pra fora do quarto, cuja porta estava aberta e até mesmo ficaria rodando a esmo pelos cantos das paredes em várias direções, quem sabe, tentando esse rodopiar me levar à força, derrubando a porta que dava pra varanda e lançando-me pelo espaço na rua, no céu, sem órbita certa.  Parecia um pesadelo, um sonho indesejado, mas que, nas proporções racionais da minha lucidez, me parecia mesmo enxotar-me do leito.
           “Júlio, meu amigo, não aguentou a saudade, não é? “Sim é verdade, mas ... e você, como está?”. “Aqui, tudo normal. Só muito trabalho, sobretudo agora, com tanto imposto de renda a fazer pros clientes. Ainda bem que eles não sabem preparar o imposto de renda. O que seria de nossa empresa nesse período de entrega de declarações? “Dá pra tomarmos um cafezinho aqui perto, já que, agora, é horário de almoço. Vamos?” “Sim, vamos”. “Mas, não vou me demorar muito. Tenho que almoçar, na sala de refeitório aqui da empresa”.
         “Júlio, preciso te contar algo. Nos dois últimos anos, não tenho aguentado as reclamações do chefe, o Eulálio, que você conhece tão bem “Não se acanhe, te abre comigo... quem sabe, posso ajudá-lo a encontrar alguma ajuda pra você. Você sabe, o quanto sofri nas mãos desse tipo, suportando sua prepotência, sua falta de educação. “Olha, Júlio, você sabe que eu não morreria de necessidade se deixasse este emprego. Minha mulher trabalha, ganha bem, se dá bem comigo. Somos felizes. Ocorre que eu trabalho na firma há muitos anos, até podia requerer aposentadoria, mas não desejo ficar sem trabalho. As coisas pioraram muito no escritório nos últimos dois anos. O chefe sempre arruma uma jeito de me chamar à atenção diante de todos os meus colegas. Isso me constrange, me humilha. Já não suporto .”Mas, Carlos, aposentar-se não é tão ruim como pensa. Olha, você tem, que eu sei, aquela casa de praia em Búzios. Em Búuuuzios, ouviu? Não é em qualquer lugarzinho aí. Pense na praia, no sol, nas caminhadas, no seu hobby de pescar, na brisa marinha que vai desfrutar. Isso não é felicidade? Além disso, você tem tua mulher, tua amiga, que, dentro em pouco, estará aposentada como você, e os dois irão curtir melhor o precioso resto de suas vidas.
        “Mas, amigo, o problema é que o trabalho pra mim é o ar que respiro e, apesar de detestar aquele chefe, amo o que faço, nasci pra trabalhar em escritório, para fazer o que faço. Essa é a minha vida”. “Quem sabe, tu não tem uma novidade. Vem outro chefe, outra pessoa com quem possa fazer amizade e trabalhar em harmonia, Tudo é possível, não é?”
       Olhei pro Carlos. Seu rosto oval, branco, com a barba bem feita, seu corpo avantajado, seus olhos azulados. Estava com um ar triste, os olhos lacrimosos. Quase não fixava diretamente os olhos pra mim, como que receoso de se abrir mais comigo. Não havia dúvida de que me escondia algo mais no imo do seu ser. Tentei dizer-lhe alguma coisa animadora. Ele me olhava e me parecia que isso lhe fazia bem. Tinha certeza de que ele confiava em mim e sabia que lhe queria bem, ainda que nossa amizade não fosse tão profunda quanto eu queria. Creio que nunca sabemos se alguém é mesmo nosso amigo, e nele podemos depositar total confiança. A alma humana é insondável.
      Tomamos o café. Nos despedimos. Fiquei, à porta daquele barzinho em frente da firma, na qual trabalhei tantos anos e acompanhei os passos daquele colega quase amigo que não era feliz no trabalho e, contraditoriamente, gostava do que lá fazia. Seu caminhado era engraçado, parecia que andava tentando evitar pisar forte no chão tanto quanto sua pessoa não gostava de desagradar ninguém. Carlos queria ser apenas feliz (como, certa vez, lhe disse um astrólogo que lhe fez o mapa) e também desejava que o mundo fosse feliz, que todos fossem felizes, que todos se dessem as mãos e atravessassem a vida sem machucar o coração de ninguém. Era uma utopia?
    Talvez sim, talvez não. Duas semanas após o nosso encontro, me telefonaram do escritório dizendo que Carlos, ao se vestir pra trabalhar mais um dia útil da semana, fora acometido de um enfarto do miocárdio. Isso foi numa sexta-feira, pela manhã, antes de tomar seu café em casa. No dia anterior, durante uma reunião na firma, Carlos teve uma crise de choro inexplicável diante dos colegas de trabalho. Chorou como uma criança.
     Búzios, a praia, o sol, as caminhadas, a brisa da manhã ou da noitinha, a pesca ficaram para trás, assim também como seu trabalho na empresa, sua labirintite, seu chefe detestável. Seu rosto oval, claro, seus olhos azulados, seu porte avantajado, quase gordo, seu sorriso largo, seu andar engraçado, sua quase amizade eram tudo que dele me restou na memória.