Eneas Barros

Em 1961, o livro “Brocotós” entrava nas prateleiras piauienses através do Caderno de Letras Meridiano. Em meio aos seus contos excelentes destacava-se “Memórias de um Canário”, sobre o dia-a-dia de uma família do ponto de vista de um pássaro engaiolado. Comentam alguns ecologistas que a história mostra o que muitos gostariam de esquecer, ao validar a condição prisioneira de uma hoje proibida atividade de comercializar e criar animais em cativeiro. Alguns, claro, porque os chamados animais domésticos não necessitam de fiscalização.
 
O fato é que “Memórias de um Canário”, narrado na primeira pessoa, é um dos mais belos contos de Fontes Ibiapina. Apresenta uma realidade que se esvai, um costume que a quase totalidade das casas piauienses outrora cultivou. Pegar pássaros em arapucas, criá-los em gaiolas, persegui-los ou acertá-los com baladeiras faz parte do desejo de muitas crianças, especialmente as interioranas. Quem nunca trocou o alpiste de uma gaiola que atire a primeira pedra! Até enterros cristãos a infância foi capaz de dar aos seus estimados companheiros que envelheciam em gaiolas ou que amanheciam depenados pelas garras daquele gato sorrateiro, sempre a espreitar uma oportunidade.
 
O conto nos presenteia com uma frase que foi utilizada pela família de Fontes Ibiapina, no santinho de seu falecimento, ocorrido há 20 anos, no dia 10 de abril. Lamenta-se o experiente canário, parte da família e envelhecido com ela: “Pena é a gente não poder escrever memórias até o fim. É sempre uma autobiografia incompleta, cujos últimos capítulos se perdem no silêncio dos mistérios entre a vida e a morte”.
 
Na véspera de seu falecimento, Fontes Ibiapina pôde sentir a profundidade daquela frase. Cultivando uma sede cultural intensa, comprou uma luneta para observar o cometa Halley, que naquela época cruzava os céus dos curiosos. Dirigiu-se às dunas da lagoa do Portinho, em Parnaíba, e aguardou o momento juntamente com alguns amigos. O tempo, nublado, não ajudou muito, mas nada impediu que as suas intenções buscassem o infinito, exatamente aqueles capítulos que se perdem no silêncio misterioso do que estaria por vir. Voltou tarde para casa, e cedo da manhã um infarto fulminante tirou-nos do prazer de seu convívio. “Acabou-se o homem”, como ele disse de Pau de Fumo, personagem de Palha de Arroz, mas ficou um legado invejável, composto de 18 livros editados, 18 inéditos e 4 póstumos – um fôlego de fazer inveja aos que vivem da produção literária.
 
Fontes Ibiapina começou a estudar já rapaz, como se costuma dizer. Formou-se em Direito, dirigiu fóruns, ministrou aulas, fundou academias e escreveu livros. Romances e contos saíam de sua pena no sossego das tardes que invadiam a noite, policiados por sua “nunca deslembrada” Clarice. Exatamente isso: a esposa fiel protegia a criação literária do marido, ao barrar o que quer que perturbasse o seu momento de inspiração. Aliás, a Fontes Ibiapina não faltava inspiração. Trazia ele da infância lembranças de sua vida de moleque nos arredores de Picos. O sofrimento do sertanejo, as suas virtudes e uma coragem de quem é “antes de tudo um forte” forneceram o alicerce do trabalho literário de Fontes Ibiapina. Dizia ele que nada era inventado, tudo havia sido vivido com intensidade, “tudo mnemonizado”, como ele próprio escreveu. E nós acreditamos. Quem haverá de duvidar de uma imaginação tão fértil, uma lembrança tão forte, uma história tão real distribuída em páginas e páginas de puro deleite?
 
Era um escritor fenomenal, disso não temos dúvida. Com o romance “Vida Gemida em Sambambaia” ganhou o I Prêmio do VII Concurso Nacional do Clube do Livro, editado em São Paulo, em 1985 – um reconhecimento pelo regionalismo que impera em seus escritos e que se firmou como uma de suas mais fortes tendências literárias. Conseguiu misturar-se a excelentes escritores com sua linguagem coloquial. Na folha de rosto de seu livro “Tocaia Grande – a face obscura”, Jorge Amado faz um oferecimento a Fontes Ibiapina bastante peculiar, que demonstra o quanto ele era respeitado. “Querido amigo, mestre romancista”, inicia o baiano. “Estou saindo em viagem para a Europa e levo comigo para ler com o interesse que tenho por seus romances o exemplar de ‘Eleições de Sempre’, que teve a gentileza de me enviar”. E finaliza: “Sou seu leitor, admirador e amigo. Jorge Amado”. Palavras simples, não fora a importância de elevar o peso da bagagem internacional com um livro de um piauiense da gema. Uma simples dedicatória, mas que espelha a amizade que nutriam através do que tinham em comum: uma linguagem que nos facilita o entendimento do cidadão e do seu jeito fiel de se expressar com espontaneidade.
 
Como todo grande escritor, Fontes Ibiapina também era um pesquisador incansável. Deixou ensaios (A Filosofia do Direito, Augusto dos Anjos e Brasileirismos no Piauí), folclore (Terreiro de Fazenda, Gente da Gente, Desfile de Malucos, Ponta de Terreiro, Almas Penadas e Dicionário Folclórico em Inglês), contos (Onde a Velha Mediu de Cócoras, Mentiras de Verdade, Onde o Filho Chora e a Mãe não Ouve, Nas Capembas Rajadas e Mentiras ou Não, o Povo Conta) e romances (Pecado é o que Cai do Cacho). Deixou anotações complementares para o seu trabalho de fôlego Paremiologia Nordestina, um apanhado de expressões populares que sonorizavam o seu dia-a-dia. Deixou muito mais. Deixou o exemplo da responsabilidade literária com o Piauí, palco de suas elucubrações. Mostrou ele que vivemos em um estado rico em ambientes e personagens dignos de registro; um estado eternamente a nos oferecer inspiração e a nos cobrar que a sua memória não se perca no silêncio de seus mistérios.
 
Fontes Ibiapina nasceu na fazenda Lagoa Grande, em Picos, no dia 14de Junho de 1921. Estudou as primeiras letras na escola do Tio Quincó – uma casa humilde cuja sala principal recebia as crianças das redondezas. Mudou-se para Teresina com 20 anos, fez o exame de admissão no Colégio Diocesano e iniciou o Curso de Direito em 1950. Exerceu o cargo de Juiz de Direito em Piripiri e Parnaíba, onde dirigiu o Fórum. Foi diretor de uma escola em São Pedro do Piauí e nasceu como escritor em 1958, com a publicação do livro de contos Chão de Meu Deus. Em 13 de Junho de 1953 sofreu um gravíssimo acidente no bairro Porenquanto, onde morava, que mudou o seu caminhar: uma descarga elétrica atingiu-o através do abajur de mesa que iluminava os seus manuscritos, comprometendo a perna esquerda.
 
Realmente, pena é a gente não poder escrever memórias até o fim. O que vem depois é talvez o desejo de estar fechando o livro para afirmar: esta foi uma grande leitura, nascida da fascinante experiência de uma vida inteira por esse chão de meu Deus.
 
 
(*) Eneas Barros é pesquisador, escritor, Gerente de Marketing dos restaurantes Favorito e neto de Fontes Ibiapina.