(Miguel Carqueija)

 

Resenha de uma rara novela "hard" da ficção científica brasileira, escrita por Gerson Lodi-Ribeiro

 

MA NOVELA EM LINGUAGEM TÉCNICA
Miguel Carqueija

“Quando os humanos foram embora” (Gerson Lodi-Ribeiro) — Coleção Fantástica n° 1, maio de 1999 — edição de “Hiperespaço” e “Megalon” (editores Cesar R. T. Silva e Marcello Simão Branco). Capa: Cerito.

    A ficção cientifica mais explicitamente “hard” (técnica) não chega a ser muito comum no Brasil. Esta novela, que o autor publicou inicialmente na França (no fanzine “Antarés”) e que dá início ao ciclo “Imortais”, fundamenta-se muito no jargão cientifico e na minuciosa e inteligente elaboração de uma raça alienígena racional e seu habitat. Para dar suporte ao argumento, Gerson acrescentou alguns apêndices técnicos com explicações astronômicas e biológicas. Veja-se um pouco do que é dito sobre os ilianos, a forma racional supracitada: “heterótrofos, pseudo-vertebrados, moluscoides dotados de exoesqueleto e simetria penta-axial; possuem dezenas de tentáculos diferenciados, ramificados e com finalidades diversas, tais como locomoção, reprodução e manipulação”; “sentidos: desprovidos de visão, dotados de sonares orgânicos extremamente sensíveis e sofisticados” etc.
    Esta raça habita Ilion, na verdade um satélite que gira em torno do planeta Héracles, gigante gasoso que orbita em torno do sol Zeus, distante 815,7 anos-luz de nosso próprio Sol. Ilion é um satélite recoberto por um oceano em cuja superfície existe incomensurável camada de gelo e neste mundo fechado vive, no fundo oceânico, a citada raça moluscoide.
    O início da novela é fascinante, lembrando um pouco as explorações de Julio Verne, que mapeavam as possíveis expansões da civilização; aqui, porém, do ponto de vista de alienígenas inumanos, enclausurados no mundo interior, oceânico, de Ilion, em seu gigantesco esforço, que durou anos e demandou concentração de recursos, em atingir o exterior do planeta, perfurando a calota. A descrição detalhista dessa grande operação cientifica é um dos pontos altos da trama, prendendo desde o início a atenção dos leitores, desde que, faça-se aqui a ressalva, sejam aficcionados por ficção cientifica. Os não-iniciados terão óbvia dificuldade em se interessar pela leitura.
    Ao construir de forma coerente os detalhes dessa grande aventura cientifica e a infra-estrutura dessa raça imaginária, Gerson Lodi-Ribeiro, com estilo sóbrio e elegante, atingiu um padrão raro na ficção cientifica brasileira, beneficiado por seus conhecimentos de engenheiro eletrônico.
    A interação entre os ilianos e os seres humanos, que colonizaram um mundo próximo, ocupa o restante da história, que se estende ao longo de séculos e milênios. Os personagens são pouquíssimos, incluindo um robô inteligente, e quase se limitam a diálogos extensos e recheados de linguajar técnico, apropriado ao panorama ultrafuturista e quase ilimitado que o autor desvenda. Discutem-se problemas como o da transmissão de matéria e da identidade dos clones. O autor põe também em discussão a diferença de mentalidade entre duas raças, equivalentes embora em raciocínio cientifico. A humana Cláudia, porta-voz da nossa raça junto aos moluscoides, tem várias participações na história ao longo de épocas diferentes, pois no universo imaginado por Gerson os seres humanos atingem imensa longevidade, ainda que, em parte, pela reconstrução de indivíduos a partir dos seus registros, o que gera uma discussão filosófica “do tamanho de um bonde” (para usar uma expressão popular hoje em desuso) que não cabe nesta crítica.
    A narração singular, onde ação e emoção vêem-se substituídas por extensos diálogos científicos, descrições técnicas e historiações de eventos cósmicos e planetários num resumo de muitos milênios, confere à novela “Quando os humanos foram embora” um caráter de originalidade na FCB a ser considerado no inventário do gênero.

(Rio de Janeiro, 11 e 12 de julho de 2009)