Uma narrativa da Torá e um trecho d' O Livro da Selva
 
UM)
 
Recontou Câmara Cascudo:
 
A raposa no pomar
 
Essa  estória está no TORAH, numa das edições que conheço. É lição de sabedoria israelita que muito pouca gente, judia e cristã, compreende e segue nos dias rápidos do mundo.
Uma raposa andava procurando almoço quando encontrou um grande e alto muro. Rodeou-o, farejando e deparou um buraco por onde avistou o paraíso do estômago e boca. Árvores de frutos semeando o solo de peças maduras, animais de fácil presa, soltos, passeando, ao alcance de uma dentada técnica, mil coisas para comer e viver, tudo pertinho, sem complicação, perto do dente.
A raposa pulou e repulou, mas descobriu que jamais passaria pela abertura da muralha com o corpo que tinha. Era gorda demais. O buraco era pequeno. Para atravessar seria indispensável emagrecer tanto que possibilitasse a passagem.
Ficou então jejuando, jejuando, língua de fora, ficando magra, para passar pelo muro e engordar do lado de dentro.
Dias depois tentou passar e passou. Estava tão magrinha que a abertura ficara larga para ela.
Entrou então a regalar-se, comendo de tudo, deliciando-se. E também engordando, engordando, rapidamente.
Tempos depois achou que devia livrar-se dos perigos daquele pomar misterioso. Podia o proprietário aparecer com uma boa vara e a surra estaria muito cara para os repastos saboreados.
Tentou repassar para a estrada, mas não conseguiu. Estava muito gorda. Forcejou. Debalde feriu as patas no esforço da escápula. Não podia reganhar a outra paisagem. Só lhe restava o remédio amargo de conseguir o antigo peso pluma, não comer e perder as banhas até o diâmetro antigo.
E ficou jejuando, jejuando, emagrecendo, emagrecendo.
Alcançou o antigo e esquecido peso velho e facilmente passou pela abertura e voltou aos caminhos velhos, com liberdade e fome tradicionais.
Só então é que a Raposa pensou no papel humano que fizera. Para entrar, passara fome. Engordara no pomar, mas perdera todas as vantagens para poder sair. Tivera de passar fome novamente para libertar-se.
Estava com o mesmo peso e a mesma fome anteriores. Não valia o sacrifício tal inutilidade física e tais renúncias morais. Melhor seria a dieta comum, parca e constante, sem dias de jejuns intercalando horas de farturas. A Raposa ficou meio envergonhada. Até aqui é a estória do TORAH. Se houver alguma semelhança é mera coincidência.
Luís da Câmara Cascudo

Diário de Natal, 06 de abril de 1949. (http://www.memoriaviva.com.br/actas/)
 
 
DOIS)
 
Narrou Kipling:
 
“(...) Estava Mowgli a puxar o pêlo do pescoço da pantera e a esporeá-la para que desse atenção ao que ia dizer.
- Penso que terei minha própria tribo, que guiarei o dia inteiro pelo Jângal.
- Que nova loucura é essa, sonhador de sonhos? - indagou Bagheera.
- Sim, e havemos, do alto das árvores, de jogar ramos e nozes sobre este urso velho - continuou Mowgli. - "Eles" prometeram-me isso.
- Mowgli - disse Baloo, - estiveste a conversar com os Bandar-log, o Povo Macaco?
O menino olhou para Bagheera para ver se também estava colérica. Os olhos que encontrou tinham a dureza do jade.
- Estiveste com os macacos? Com os macacos cinzentos, o povo sem lei, os comedores de tudo? Que vergonha!...
- Quando Baloo machucou minha cabeça - respondeu Mowgli ainda na mesma posição - saí pela Jângal, para muito longe. Os macacos cinzentos, em certo ponto, desceram das árvores, cheios de piedade por mim. Só eles tiveram dó de mim...
O dó do Povo Macaco! - exclamou Baloo com ironia. - Isso vale o mesmo que dizer o silêncio da cachoeira, a frescura do fogo... E depois, filhote de homem?
- Depois... depois me deram castanhas e mais coisas gostosas!... carregaram-me nos braços ao topo das árvores e afirmaram que eu seria o seu grande chefe.
- Os macacos não têm chefe - rosnou Bagheera. - Mentiram. Mentem sempre.
- Foram muito bondosos comigo - prosseguiu Mowgli, - chegando a pedir que voltasse de novo. Dizei-me: por que nunca me levastes para o meio desse povo? Eles sabem andar de pé, como eu. Não me maltratam. Brincam o dia todo. Larga-me, Baloo! Deixa-me ficar de pé, urso malvado! Quero e hei de visitar os macacos outra vez...
- Ouve, filhote de homem - urrou o urso com voz de trovão. - Ensinei-te a Lei do Jângal no que diz respeito a todos os animais, menos aos macacos que moram em árvores. Eles não têm lei. São proscritos. Vivem rindo de tudo, sem saber por quê. Nós no Jângal não temos nenhum entendimento com esse povo. Já viste a mim, por acaso, falar neles, algum dia?
- Nunca - respondeu Mowgli num murmúrio que soou nítido no silêncio em que o trovejar de Baloo deixara a Jângal.
- O Povo do Jângal os baniu da sua boca e do seu pensamento. Eles são numerosíssimos, maus, sujos, sem brio, animados do desejo único de serem vistos e admirados por nós.
Mal acabara Baloo de pronunciar estas palavras, uma chuva de nozes e galhos secos caiu sobre eles, vinda de cima das árvores próximas, acompanhada de um rumor muito conhecido de saltos, guinchos, uivos e tossidas.
- O Povo Macaco não existe para o Povo do Jângal. Lembra-te sempre, Mowgli.
- Não existe - confirmou Bagheera. - Mas julguei que Baloo já houvesse avisado Mowgli disso.
- Eu? Eu? Como poderia adivinhar que iria ele meter-se com a sujidade? Macacos! Ugh!...
A chuva de nozes e galhos continuou, fazendo que o urso e a pantera se fossem dali e levassem Mowgli consigo. O que Baloo dissera dos macacos correspondia à realidade.
"(...)" (versão para o português - possivelmente de Portugal - em http://www.quemtemsedevenha.com.br/os_macacos.htm, não mencionado o nome do tradutor; corresponde - consideradas as notáveis diferenças entre as versões - ao trecho de O Livro da Selva cujo tradutor é Duda Machado, "A caçada de Kaa", pp. 37-63 [trecho transcrito: pp. 40-42], São Paulo: Ática, 1994).