Uma lição de leitura
Em: 06/11/2020, às 17H59
RESENHA DO CONTO O Rapaz que Habitava os Livros (1)
Carlos Evandro M. Eulálio
Se Nietzsche observava que o melhor autor é aquele que sente vergonha de ser um homem de letras, o melhor leitor será aquele que se envergonha de considerar-se um leitor melhor do que os outros. (Gabriel Perissé)
Narrado em primeira pessoa, o conto “O rapaz que habitava os livros”, do escritor angolano Valter Hugo Mãe, mostra o fascínio da personagem pelos livros, concebendo-os como guias e companheiros de todas as horas.
Em várias passagens metalinguísticas, o narrador-persagem salienta a importância que os livros representam para si, quando, ao personificá-los, chega a defini-los como “objetos cardíacos [...] lidos profundamente, eles estão incrivelmente vivos. Escolhem leitores e entregam mais a uns do que a outros.”
Isso significa dizer que os livros têm o poder de ampliar os conhecimentos dos leitores, dependendo do repertório de cada um em particular. Por isso a leitura tem um importante papel na vida dos leitores. Por consequência, a leitura, do ponto de vista do narrador, é o meio de ampliar a percepção de mundo, visto que “os livros não esquecem nada. Eles são sempre a mesma memória admirável”, isto é, repositórios de informações que permitem a descoberta de novos aprendizados.
Os livros também são o lugar de encontro atemporal com escritores de todas as épocas, daí o narrador acena nesta passagem para a ideia de que, ao lermos uma obra literária, “podemos conversar com “Camões, Shakespeare, Machado de Assis, mesmo que tenham morrido há tantos anos. A morte não importa muito para os livros.”
Com essa constatação, opera-se o efeito do sinfronismo, que tem por função estabelecer uma sinergia independente do tempo e do espaço entre o autor e o leitor. Charles Du Bos, ensaísta e crítico francês, torna mais claro esse fenômeno, ao afirmar que
"...Cada vez que um homem frente a uma obra literária - qualquer que tenha sido a época em que foi criada - consegue emocionar-se e reviver em si os sentimentos que comoveram o autor no instante em que compôs, opera-se o efeito do sinfronismo, flui a onda maravilhosa de sintonia espiritual capaz de aproximar simpaticamente a dois seres, mais além do tempo e do espaço. A literatura é veículo sinfrônico que apaga as distâncias e as idades conjuradas pela emoção". (2)
Na passagem do conto - “Eu disse que ler é como caminhar dentro de mim mesmo. E é verdade. Quando lemos estamos a percorrer o nosso próprio interior,” a leitura é definida como forma de atingir o autoconhecimento pelo qual temos consciência de nossos desejos e sentimentos.
Os livros também são vistos como espaço de reflexão tanto da realidade - “Porque as coisas que se leem precisam de ser pensadas” - quanto da fantasia, presente nos diálogos criativos do narrador-personagem com outra personagem não nomeada, “uma menina do colégio”, que sempre lhe perguntava “se queria brincar às coisas bonitas”, ao que ambos aceitam também refletir sobre “As coisas todas que pudermos imaginar”, possibilidade somente admissível pelo poder mágico que há por trás das palavras. Conforme a escritora Graça Vilhena, na literatura,
“...elas têm o poder de despertar nossa imaginação, nos levar a descobertas pelo encantamento na riqueza da linguagem e, também, muitas vezes, elas possibilitam uma reflexão sobre nós mesmos, em relação ao mundo”.(3)
Para o autor Valter Hugo Mãe, quando lemos, estamos a percorrer o nosso próprio interior,(4) como se a palavra produzisse no leitor a sensação de liberdade que lhe permite sonhar e viver inusitadas experiências pela ressignificação da realidade, a partir de uma nova percepção de mundo.
Notas
1. MÃE, Valter Hugo. O rapaz que habitava os livros in Contos de Cães e Maus Lobos. Porto: Porto Editora, 2015, p. 87
2. CASTAGNINO, Raul H. Que é literatura. Editora Mestre Jou, São Paulo, 1969, p. 28, citado por Marcos Roberto in http://lotusmappo.blogspot.com/, acessado em 3/8/2020.
3. VILHENA, Graça. Literatura, a arte da palavra. Teresina, in http://portaldombarreto.g12.br/ acessado em 17/09/2020.
4. MÃE, Valter Hugo, 2015, p.97.