A MALDITA

Miguel Carqueija


    Lá vinha ela. A maldita me avistara e vinha ao meu encalço. Fui obrigado a correr como nunca havia corrido antes, em toda a minha vida. Oh, a maldita, que já havia ceifado tantos amigos! Agora chegara a minha vez — assim parecia. Era muito difícil escapar da maldita.
    Mas eu tinha que tentar. Corri por becos e ruelas estreitas, derrubando latas de lixo na desabalada carreira — sabia que poderia assim dificultar-lhe um pouco a perseguição. Tudo, porém, parecia inútil. Ela se aproximava cada vez mais — e meus pulmões pareciam querer rebentar, tal o esforço que eu fazia. Só o medo me impelia ainda para a frente.
    Agora eu subia a Ladeira Angulosa, tão íngreme que nela não costumava me aventurar. Essa ladeira dava acesso a uma favela e de seu topo passava-se para uma descida abrupta em curva. Ao chegar lá estava esgotadíssimo e com a maldita nos meus calcanhares.
    Então deu-se o milagre. A maldita derrapou numa mancha de óleo, rangeu e desequilibrou-se. Logo, com terrível ruído, despencou-se na outra descida, ricocheteando no chão e tornando a saltar, quebrando-se toda, espalhando vidro e os gritos de dor e susto dos homens em seu interior. Fiquei olhando fascinado de horror a ruína da carrocinha de cães que descia fragorosamente, arrebentando-se toda, até chocar com um poste, que levou abaixo. Depois tratei de fugir.
       E agora eu sou considerado um herói entre a cachorrada local. Eu, que me arrepiava de medo da maldita, consegui derrotá-la. Ainda não foi substituída, pois segundo comentários que alguns de nós ouviram de seus humanos, a Prefeitura está sem verba — seja lá o que for isso — para comprar outra. Deus queira que essa verba nunca chegue.

(Rio de Janeiro, 2 de junho de 1984)