Em 1927, Verde era a única revista de divulgação do novo ideário em circulação no país, o que carreou para suas páginas textos dos mais importantes escritores modernistas em ação naquele momento. Se Mário de Andrade e Alcântara Machado a recomendavam com entusiasmo aos colegas espalhados pelo Brasil, Oswald de Andrade levou sua admiração ao extremo: tomou um trem e desceu, pantagruélico, na estação da cidadezinha acanhada só para conhecer os meninos mal saídos dos cueiros. No correio, chegavam pacotes e pacotes de livros, revistas e jornais, inclusive do exterior, consumidos com avidez pelo grupo. Cataguases, de uma hora para outra, ganhava espaço entre a intelectualidade brasileira.
Dos que assinaram o Manifesto Verde, um precioso documento de ingênua rebeldia que acompanhou o terceiro número da revista, alguns inscreveram seus nomes em definitivo na história da literatura nacional: o poeta Ascânio Lopes, morto prematuramente, com menos de 21 anos; o contista Camilo Soares, que ainda aguarda que alguém lhe reúna a obra dispersa; o poeta, romancista, historiador e crítico literário Guilhermino César (que a partir da década de 1930 adotou o Rio Grande do Sul como pátria); o romancista Rosário Fusco, autor dos cultuados O Agressor e Carta à Noiva; e o contista Francisco Inácio Peixoto, filho de industriais, ele mesmo industrial, responsável pela introdução da arquitetura modernista que marca e diferencia Cataguases como patrimônio cultural brasileiro – onde Oscar Niemeyer e discípulos desenharam uma espécie de rascunho do que seria mais tarde Brasília.
Poetas marginais, jornais mimeografados
De lá para cá, a cidade tem se esmerado em manter a tradição literária. No fim da década de 1930, o solitário Henrique da Silveira publicou seus textos em jornais locais – seu livro, Poemas Desta Guerra, só seria editado na década de 1970. No fim da década de 1940, acompanhando a tendência de reação aos excessos do modernismo, Cataguases viu nascer a revista Meia-Pataca, revelando os poetas Francisco Marcelo Cabral e Lina Tâmega, que iriam desenvolver suas carreiras no Rio, o primeiro, em Brasília, a segunda. Pouco depois, surgem duas poetas, de igual sensibilidade e importância no cenário nacional, Celina Ferreira e Maria do Carmo Ferreira.
Na década de 1960, inicialmente influenciados pelo movimento concretista, os irmãos Branco (Joaquim e Aquiles e P.J. Ribeiro) e Ronaldo Werneck fundam um suplemento literário, “SDL”, mais tarde desdobrado no jornal Totem, que se tornou um dos mais importantes órgãos de divulgação da poesia de vanguarda brasileira, ampliando seus interesses para além do concretismo. Ao longo de toda década de 1970, por suas páginas de diagramação vertiginosa desfilaram autores brasileiros e estrangeiros comprometidos com as mais radicais tendências da experimentação da linguagem poética, como o poema-processo, e do suporte material, como a arte-postal. Do núcleo inicial, além dos já citados poetas Joaquim Branco, Aquiles Branco e Ronaldo Werneck e o contista P.J. Ribeiro, sobressaíram a poeta e ficcionista Marcia Carrano e o poeta Fernando Abritta.
Cataguases sempre espelhou os movimentos que ocorriam em nível nacional: modernismo, neoparnasianismo, vanguarda. Na década de 1970, ao lado da experimentação formal do grupo ligado ao Totem, apareceram os poetas marginais com seus jornais mimeografados, com destaque para dois títulos principais, Lodo e Nexo, que serviram de laboratório para a geração seguinte, curiosamente dedicada, em contraposição às anteriores, mais à prosa de ficção que à poesia.
A tradição da cidade
Assim, temos os romancistas Fernando Cesário (Os Olhos Vesgos de Maquiavel) e Marcos Vinicius Ferreira de Oliveira (E Se Estivesse Escuro?), os contistas Ronaldo Cagiano (O Sol nas Feridas) e Eltania André (Manhãs Adiadas), e o mais conhecido de todos, Marcos Bagno, que, além de ser uma das maiores autoridades em linguística do Brasil – seu Preconceito Linguístico alcança a inacreditável marca de 55 edições em pouco mais de dez anos – e consagrado autor de livros infantis e juvenis, é também poeta, contista e romancista – seu livro As Memórias de Eugênia foi finalista neste ano do Prêmio São Paulo de Literatura na categoria estreante. Cabe aqui lembrar ainda os nomes de José Santos e Tadeu Costa, que se dedicam à literatura infantil e juvenil, e do poeta Marcelo Benini.
Bom, também eu nasci em Cataguases. Filho de um pipoqueiro e de uma lavadeira, passei a infância brincando de pique em torno de uma pracinha, que ostenta um painel de Portinari e uma escultura de Bruno Giorgi. Carregava trouxas de roupa lavada e passada, equilibrando-as na garupeira de uma bicicleta, para casas de arquitetura modernista das avenidas Humberto Mauro e Astolfo Dutra. Acompanhava minha mãe às missas na Igreja de Santa Rita com seu painel de Djanira, passeava na praça Rui Barbosa com o coreto projetado por Francisco Bolonha, frequentava as matinês do Cine-Teatro Edgar, projeto de Carlos Leão e Aldary Toledo, visitava meus amigos no Bairro-Jardim, conjunto de casas operárias desenhadas por Francisco Bolonha (na minha época, estranhamente, o lugar era conhecido como Favela...).
Eu não sabia de nada disso, evidentemente. Para mim eram casas, pinturas, árvores... Nem sabia também que o suplemento que vinha encartado no jornal oficial da cidade era o Totem e que eu, ignorante, começava consumindo a literatura de vanguarda sem ter visitado nenhuma outra anteriormente... Exponho tudo isso para me inserir no quadro da tradição de Cataguases... Exponho tudo isso, na verdade, para confessar uma enorme frustração. Se eu tivesse nascido alguns quilômetros depois, ou antes, de Cataguases, digamos, em Ubá ou Laranjal, talvez hoje pudesse me orgulhar de ser o escritor mais conhecido de minha cidade – e, por falta de concorrência, quem sabe, até o melhor. Nascido em Cataguases, só me resta lamentar e me enfileirar atrás dos grandes. Mas, pensando bem, se não houvesse nascido em Cataguases, muito provavelmente eu nem seria escritor...
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[Luiz Ruffato é escritor. Autor de Eles Eram Muitos Cavalos, Estive em Lisboa e Lembrei de Você e do projeto Inferno Provisório. Foi traduzido em países como Itália, França, Portugal, Argentina, Colômbia, México e Alemanha]