Uma cidade cosmopolita (Rio em 1910/1920)
Em: 29/05/2016, às 15H11
Beatriz Resende
O Rio de Janeiro dos anos 10 e 20 deste século [XX] é uma cidade que abriga uma população profundamente diferenciada. Escravos libertos, estrangeiros em busca de trabalho, jovens placas ou francesas que vêm tentar a sorte, migrantes do resto do país vem para o Rio conviver com políticos, funcionários públicos, diplomatas, jornalistas, artistas, poetas, compositores, malandros, homens e mulheres comuns, numa partilha de espaço como não acontecia em nenhuma outra cidade do país.
Dentre esta população urbana, os intelectuais vão exercer um papel fundamental de formadores xerox opinião, opinião que não só influenciará o poder - de que são vizinhos na Capital Federal - como se espalhará por toda a nação.
Ser cosmopolita é a maior ambição que tem o Rio de Janeiro no início do século. O fato de ser porto de mar evidentemente reforça essa ideia e faz com que a ligação, sobretudo com a Europa, se faça através do Rio. Os anos que antecedem Imediatamente o de 1922, no entanto, mais do que nunca viram tal ideal de cosmopolitismo se transformar num esforço nacional. A realização da Exposição Internacional do Centenário, que se estendeu pelas cercanias do porto e para cuja realização o prefeito Carlos Sampaio acelerou a derrubada do Morro do Castelo, deveria ser ocasião para que a cidade, e através dela o país, se ligassem diretamente ao internacionalismo do mundo industrializado.
Para dar lugar a tal capital naturalmente cosmopolita, justifica - se a derrubada do Morro do Castelo com marcas do início da colonização - a Igreja dos Capuchinhos, o jazigo de Estácio de Sá - e mais a derrubada de habitações antigas e pobres que se localizavam à sua volta.
Mais forte que a de Portugal, como todos sabemos, foi a influência francesa sobre comportamento, gosto e construção do saber no Rio de Janeiro. Essa influência estendeu-se expressivamente das primeiras missões francesas até a arquitetura de Le Corbusier. Seu auge foi atingido durante a belle époque da cidade, no início da Primeira República. As cocottes eram, ou diziam ser, francesas; entre os lugares da moda estavam o Café Paris, o Café Provence, o Moulin-Rouge. O vocabulário incorporava definitivamente palavras como chic, mise-en-plis, rendez-vous e, é claro, cocotte, ainda que essas sedutoras nem sempre fossem francesas. Antenor Nascentes, do alto de sua cátedra, legítima em O linguajar carioca, publicado em 1922, esses empréstimos ao afirmar que "A principal característica do léxico carioca é, se assim podemos nos exprimir, o seu cosmopolitismo".
Nos anos 1920, entretanto, a novidade é que, através também dos cronistas, podemos confirmar a chegada do gosto americano. O sempre up-to-date Benjamim Costallat é o melhor exemplo e os títulos de seus livros bem o evidenciam: Arranha-céu, Mutt, Jeff e Cia., Cock-tail. A música e o cinema terminariam por impor a moda despojada e o informalismo americano. Se no início do século Olavo Bilac condenava, na revista Kosmos, que um dos jornais mais sérios da cidade chegasse a "aconselhar que imitem os os yankees práticos e comodistas, os quais, nos dias de canícola, perambulam pelas ruas de New York e Chicago, em mangas de camisa, com o colete desabotoado e trazendo o paletó dobrado, ao braço, à guisa de sobretudo...", concluindo que percorrer a avenida em mangas de camisa ""É uma indecência", em 1922 o gosto já estava bem diferente. O cinema e as jazz-bands aparecem como principais atrações das novas tendências americanizadas.
Nos anos 1920 a ideia de cosmopolitismo é defendida principalmente por Graça Aranha, o acadêmico que sai do Rio para abrir a Semana de Arte Moderna em São Paulo. O cosmopolitismo de Graça Aranha, Ronald de Carvalho e outros encontrará em Jackson de Figueiredo e depois Plínio Salgado, seus principais opositores. O argumento usado por Jackson de Figueiredo para rejeitar esta atitude de sintonia com novos tempos e de abertura ao exterior será o nacionalismo. Sintetizava, em 1921, o criador do Centro Dom Vital:
O cosmopolitismo não é uma aspiração dos povos, é uma teoria, e, como toda teoria, filosófica ou política, esta sujeira a discussões e a contraditas; enquanto que o patriotismo é um sentimento natural, que jamais poderá ser discutido, não sendo possível extirpá-lo do coração humano, sejam quais forem o grau de cultura e o poder de abstração a que atingirem os supostos"espíritos emancipados".
É importante lembrarmos aqui Jackson de Figueiredo, pensador que quer ligar a Igreja católica à política, sonhando construir um partido político que reunisse as forças da Igreja conservadora, para que possamos compreender por que o gosto "cosmopolita" de autores como Benjamin Costallat desagradou tanto aos que, como Jackson de Figueiredo, defendiam o que ele chama de "literatura reacionária", opondo conscientemente reacionarismo aos perigos das revoluções.
A vivência da Primeira Guerra mostrara os perigos do patriotismo para a humanidade como um todo. O sempre lúcido Lima Barreto já declarara em suas crônicas que o sentimento de Pátria era "exclusivista e mesmo agressivo" servindo apenas aos "charlatães do Estado" que "em nome da pátria e de estúpida teoria das raças, instilaram na massa ignara das populações sentimentos guerreiros de agressão"
Hoje, a crítica aos perigos do nacionalismo e seus sucedâneos, o racismo e os integrismos, nos faz perceber que a vocação cosmopolita da cidade e de seus cronistas significava uma postura de pluralismo e abertura.
Beatriz Resende *
Nascida no Rio de Janeiro, Beatriz Resende é Professora Titular de Poética do Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. Pesquisadora I-B do CNPQ, é Cientista do Nosso Estado pela FAPERJ desde 2006. É pesquisadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea onde participa como orientadora de Pós-Doutorado. Foi professora do Departamento de Teoria do Teatro e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, coordenou o Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro de 2007 a 2011 e foi Diretora da Editora UFRJ em 2011-2012. É bacharel e licenciada em Português e Literaturas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1969), mestre em Teoria da Literatura (1980) e doutora em Letras (Literatura Comparada) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1989). Realizou estágio de Pós-Doutorado no Museu Nacional da UFRJ (2000). É autora, dentre outras publicações, de "Contemporâneos, Expressões da literatura brasileira no século XXI". RJ: Casa da Palavra/Biblioteca Nacional, 2008; "Apontamentos de crítica cultural". RJ: Aeroplano, 2000 e "Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos". RJ/SP: Editora UFRJ/Editora UNICAMP, 1993. Organizou "Possibilidades da nova escrita literária no Brasil", com Ettore Finazzi-Agrò. RJ: Revan, 2014; "Cocaína, literatura e outros companheiros de viagem".RJ: Casa da Palavra, 2006; "Rio Literário". RJ: Casa da Palavra, 2005 e "Toda Crônica"(reunião das crônicas de Lima Barreto). RJ: Agir, 2004.