Uma carteira no trânsito das três.

[Dílson Lages Monteiro]                         

                                                                                 Para Dalton Trevisan

Ele despencou no ar. Um metro e setenta até se atirar ao chão, como se tivesse deslizado. Corri para próximo da calçada. Ali se achegava gente igual a mim. Olhando ao redor, vi que todos os anônimos já me eram de vista conhecidos do trajeto da longa avenida. Iguais ao homem agora afetado pelo calor da vertigem. Os iguais da cidade grande. Gente que sempre se vê à distância das roupas, passos e passamentos.

No relógio, os ponteiros mortos. O tempo parara às 15h. Tanto calor! O homem frequentava o bar da pracinha, a feira de passarinhos, a igreja do bairro. Dessas centenas de pessoas que conhecemos sem conhecer. Vemos todos os dias. Gente a quem nunca dirigimos um bom dia, mas sabemos que faz parte da paisagem de um lugar. E se deixa de passar por onde passa, logo terá sua falta sentida... e muito perguntarão: “Morreu o homem de casaca jeans, de guarda-chuva ao sol, embrulho de supermercado na mão direita, de volta pra casa ou a caminho do trabalho, ou sabemos lá o quê?”

Ali jazia um anônimo sem vida.

Assisti ao rápido despir de sua condição de homem social. Arrancaram-lhe o colar. Ouro 22 (conheço bem, já surrupiei um bocado e posso afirmar: coisa boa). A jaqueta era de marca, o cinto brilhoso e, na sacola, um pedaço de pudim, devorado ali mesmo por um morto de fome. Pudim para a netinha! Talvez viesse da lanchonete 71 ou de alguma padaria, ou de casa – o comilão ainda lamentou que o bolo quente queimara o céu da boca. Desgraça! Quem tinha dó ainda nesse mundo, meu Deus?

Nem o relógio parado, vidro despedaçado, foi poupado.

Afastei todo mundo. Empurra daqui. Empurra dali. Avancei sobre o corpo e puxei com força a carteira, correndo em disparada. Dei-me por mim, o dono do bar da praça em largas passadas. Quase me derruba... Se eu não tivesse habilidade do ladrão que fui antes de em mendigo me fazer, me perderia entre socos e ponta-pés.

Ficaram para trás 6 quarteirões. Procurei ar no espaço sufocante dos prédios. Encontrei no número 50. Velho edifício com atmosfera de abandono. Alguns vezes, por ali passara como se ali se escondessem fantasmas! Abro a carteira e o talão de água em meio a três cédulas de 200, o endereço onde eu avisaria de um corpo despido no trânsito das 3.