Chegando em casa, vim a saber que ele falecera ontem, atingido pelo duro golpe de uma paralisia e, em seguida, derrame.
                      Era um vizinho. Certa vez, inspirou-me um estória em que era personagem central, estória que, aliás, ficara apenas na inspiração.Crioulo bom. Sorrindo sempre – um traço seu notável. Sorriso aberto, límpido, amigo, sem bajulação. Sorriso de respeito, de espanto da vida, de admiração, talvez, pelas pessoas que lhe ganhavam o coração. Pedreiro, pintor de parede, quarentão já, solteirão, sem trabalho definido, trabalhador bissexto, figura engraçada de bom malandro, sem nenhuma tendência para o mundo do crime e da desonra. Encafuava-se em sua casa Durante meses e meses, talvez doente. Amante do álcool, que lhe mitigava os desacertos da vida, marginalizada sem ser, no entanto, marginal. Era um bom vadio, sem maldade, provavelmente nunca tenha sido preso na vida.
                    Jamais lhe pude notar um sinal de mau-humor. Nunca o vi metido em brigas. Quanto respeito a mim!  –  Seu Francisco!  Seu Francisco!...  Bom dia! - cumprimentava-me. Cumprimento honesto, humilde, humano. Fazia questão de me saudar tantas vezes quantas me encontrasse durante o dia.
                   Sorria sempre. Voz engrolada. Paupérrimo, seu único arrimo:a  mãe, preta velha que o amava como todas as mães. Mesmo bêbado, nunca lhe faltava ao respeito. Resignado à sua volta condição humílima, à sua ascendência étnica, sofrido, levava uma vida sem destino, vivendo enquanto lhe batia o coração.
                  Às vezes, saía de seu quarto, descia a escada, postava-se à porta do edifício em que morava, todo sorrisos, saudando a todos que conhecia. Sorriso largo, que me lembrava o daquele pequeno Tuesday, personagem do romance The Jacarandá tree,  de H. E. Bates (1905-1974), romancista, contista e dramaturgo inglês.
                 Tendo mais qualidades que defeitos, era um apaixonado por futebol, cujas notícias procurava divulgar e mesmo discutir com conhecidos, não sem aquele fanatismo de todo bom habitante do Rio de Janeiro amante desse esporte.
                 Sabia ler. Lia os jornais dos outros, os quais aproveitava quanto podia. Algumas vezes eu lhe mandava a parte esportiva do Jornal do Brasil de domingo. Quanta alegria lhe dava isso! Quando me via no dia seguinte, o sorriso crescia, atrapalhava-se no cumprimento. Obsequioso, não se negava a prestar serviços. Embriagado, não perdia a cordura e o sorriso.
                Por uma dessas infelicidades da vida, sua mãe, com a morte do marido, um bom crioulo, velhinho simpático, viu-se em dificuldades financeiras, tendo sido obrigada a deixar o apartamento modesto, sob ameaça de despejo.
                Quanta tristeza senti que lhe ia na alma quando se achou sem teto, prestes a dormir ao relento, sem saber aonde ir ou  a  quem recorrer, vendo-se privado da proteção de sua mãe e irmã, que foram morar com parentes. Durante esta fase difícil, vi-o algumas vezes pensativo, sentado à calçada de uma rua vizinha. Havia se desfeito de sua cama e de alguns objetos pessoais que não sabia onde guardar e de que não queria por força se separar.
Todavia, em meio a tantas desgraças físicas e morais, não abandonara o sorriso franco, derramado, solícito, pródigo.
             Não lhe fui dar o último adeus, como o havia feito a seu pai. Enterro de crioulo simples, bom vagabundo que, certamente, no mundo dos mortos, ainda encontrará para todos aquele sorriso do qual em vida nunca se apartara e com o qual conquistara corações terrenos.

*Nota: Texto inédito.