Capa do livro Prólogo, ato, epílogo: memórias (2019), de Fernanda Montenegro
Capa do livro Prólogo, ato, epílogo: memórias (2019), de Fernanda Montenegro

Um olhar delicado sobre nossa história

 

Décio Torres Cruz*

 

Confesso que biografia não é meu gênero preferido, muito menos autobiografia, mas não resisti ao Prólogo, ato, epílogo: memórias (Companhia das Letras, 2019), de Fernanda Montenegro, principalmente pela polêmica que a sua indicação para a ABL gerou na época. Ainda bem que venci minha resistência a este gênero. O livro me fisgou desde o início e não consegui parar de ler até chegar ao final. O que se descortinava diante de mim à medida que aprofundava minha leitura não era apenas a biografia de uma grande atriz, mas um documento importantíssimo sobre décadas que atravessam séculos da história de nosso país. Além da importância artística desta ilustre figura para a nossa cultura, somente este livro já justifica sua entrada para a Academia Brasileira de Letras.

Logo de início, o prólogo nos revela a saga dos imigrantes italianos e portugueses que aqui chegaram em busca de melhores condições de vida. As dificuldades que enfrentaram em terras brasileiras e o estado de pobreza em que se encontravam geralmente são escamoteadas por pessoas que adoram alardear sua herança europeia. Fernanda faz o contrário. No prólogo, ela resume a sua pré-história e descreve, sem qualquer pudor, a difícil saga de sua família sardo-portuguesa, avós e bisavós imigrantes que vieram ao Brasil atraídos pelo ouro de Minas Gerais no final do século XIX e aqui se depararam com a pobreza e exploração do trabalho que deixava de ser escravo, mas ainda guardava resquícios da escravidão. Em poucas páginas, resume décadas de histórias que em si possuem material suficiente para gerar diversos livros (e como leitores, ficamos desejando que ela dê continuidade a essas histórias em outros livros).

No capítulo “ato”, a autora descreve a sua estreia e sua trajetória na cena cultural brasileira: a entrada na Rádio MEC como locutora e depois como radioatriz, sua descoberta e paixão pelo teatro, os preconceitos enfrentados por mulheres para trabalharem como atrizes, o apoio familiar às suas escolhas, a formação dos grupos de teatro, o seu namoro com Fernando Torres, com quem viria a se casar e passar o resto de sua vida, o nascimento de seus filhos e netos, as dificuldades financeiras e políticas enfrentadas durante diversas décadas, o convívio com grandes nomes da cena artística (da literatura, da música, das artes plásticas, do teatro e do cinema), o sadismo da censura instalada nas artes e os prejuízos acumulados por atores e diretores por causa de peças censuradas, a exploração de bancos sobre o trabalho artístico, o calote de redes de televisão que sonegavam o pagamento dos atores, a luta pela sobrevivência e para pagar as contas em tempos difíceis, os preconceitos contra a livre expressão do pensamento e contra a esquerda, o preconceito da esquerda contra atores homossexuais no Teatro Oficina, os diversos presidentes e mudanças políticas, a chegada da ditadura militar, sua participação política no Diretas Já, a redemocratização do País, suas participações em peças, novelas e filmes, seus prêmios, sua indicação ao Oscar. Tudo isso nos é relatado com um humanismo de uma beleza e simplicidade profundas, sem qualquer vanglória.

Em seguida, o epílogo surge, também de forma curta, no qual a autora relata seus últimos trabalhos. E terminamos a leitura com desejo de abraçar esta figura apaixonante que nos transmite todo o amor que dedica a tudo que faz. É um privilégio termos este histórico de décadas da história brasileira contada por alguém que nela teve participação direta como testemunha de episódios da nossa vida político-cultural. Composto de diversos registros fotográficos que ilustram a narrativa, é um importantíssimo documento histórico de nossa literatura (e também da literatura estrangeira), dramaturgia, cinema, teatro, rádio, artes plásticas, cultura e principalmente, de nossa política. Histórias diversas, descritas de uma maneira leve e atraente por quem as vivenciou e as observou com um olhar não só crítico, mas, principalmente, muito humano.

 

Fernanda Montenegro (Fonte: ABL)

 

Sobre a autora

 

A atriz e escritora carioca Fernanda Montenegro (nome artístico de Arlete Pinheiro da Silva) é considerada a grande dama do cinema e da dramaturgia do Brasil. Ao lado do marido Fernando Torres, iniciou uma bem sucedida carreira no teatro por mais de sete décadas, com trabalhos marcantes como as peças As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, Dias Felizes Virão e Beijo no Asfalto e os filmes Eles Não Usam Black-Tie, O Auto da Compadecida e Vida Invisível. Na televisão, foi a primeira atriz contratada pela TV Tupi, em 1951, onde estrelou dezenas de teleteatros. Estreou nas telenovelas em 1954 como protagonista de A Muralha, na Record TV, dentre outras produções. Trabalhou nas principais emissoras do Brasil: Record, Globo, Band, TV Cultura e nas extintas TV Excelsior, TV Rio e Rede Tupi. Internacionalmente reconhecida, foi a primeira mulher latino-americana, lusófona e brasileira indicada ao Oscar de Melhor Atriz e ao Globo de Ouro por Central do Brasil. Venceu o Emmy Internacional de Melhor Atriz por Doce de Mãe e ganhou o Urso de Prata do Festival de Berlim. Em 1999, foi condecorada com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito e, em 2013, foi eleita a 15ª celebridade mais influente do país pela revista Forbes. Por cinco vezes, recebeu o Prêmio Molière. Também ganhou por três vezes o Prêmio Governador do Estado de São Paulo. Durante a Cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016, Fernanda leu o poema "A flor e a náusea", de Carlos Drummond de Andrade, dublado em inglês por Judi Dench. Além deste livro, é autora de Fernanda Montenegro: Itinerário fotobiográfico (SESC, 2018), com memórias da dramaturgia nacional. Ocupa a cadeira 17 da Academia Brasileira de Letras desde março de 2022, sucedendo o diplomata Affonso Arinos, sendo, na época, a 9.ª mulher e a primeira atriz a entrar na lista dos imortais da ABL.

 

 

 

 

 


* Membro da Academia de Letras da Bahia e da Academia Contemporânea de Letras de São Paulo. Autor, dentre outros, de: A poesia da matemática (2024), Histórias roubadas (2022) e Paisagens interiores (2021).