Cunha e Silva Filho
 
 
        Hoje entro na minha intimidade com a parte técnica de  escrever  no computador. Vou logo dizendo, leitor amigo,  que me doeu muito e muito não poder  postar todo um artigo discutindo  o que penso  atualmente do uso da rede social  Facebook. Só sei que o meu texto sumiu  dos meus  arquivos e, entre as coisas que me aborrecem, uma delas é escrever no computador para  meu  Blog e a coisa não dar certo. É ocioso  afirmar que  sou um pobre digitador, um capenga, cata-milho de digitação,  que erra muito e digita rápido. O quer dizer que, nem sempre, rapidez é eficiência.
         Dos meandros  desse aparelho  tão útil  não entendo muito. Para tentar reverter a situação,  recorri até a um amigo que  conhece muito  dessas coisas  ligadas ao computador. Outro amigo, a quem  relatei o fato,  me aconselhou a voltar a escrever à mão e, depois,  digitar. É uma boa dica, pois há tempos digito diretamente  no computador sem mais  recorrer  primeiro à velha e saudosa escrita manual. Estou até mesmo pensando em  voltar a ela. Passei três dias procurando recuperar meu texto. Até pensei em São Longuinho que me tem,  muitas vezes,   encontrado  o que que perdi. Paciência.
         O artigo perdido tinha o título “Volto ao tema do  Face  e outros pressupostos.” Há algum tempo atrás, escrevi e publiquei no meu Blog "As Ideias no tempo" outro artigo sobre o mesmo assunto. Mas esse segundo artigo  estava bem melhor, sem modéstia à parte,  e  aprofundava   debates  e considerações em torno do tema. Podia até esnobar que  o artigo  perdido  estava nos trinques e iria dar o que falar.
      Ah, se tivesse  o poder mnemônico do grande contista João Antônio que,  uma vez  sendo vítima de um incêndio em casa,  perdeu os originais do longo  conto “Malagueta, Perus e Bacanaço” e, não desistindo do seu conto comido pelas labaredas, o reescreveu numa biblioteca de São Paulo. Que tento  vitoriosamente  conseguido pelo contista!⁢ "Malagueta, Perus  e Bacanaço" serviu de título a uma coletânea de contos  de  João Antônio, e com ela se estreou na literatura brasileira em 1963, publicação  da Civilização Brasileira, Coleção Vera Cruz,  volume 47.  O conto é uma obra-prima  da literatura  brasileira no gênero. Recebeu  o aplauso de notáveis críticos literários, como  Antonio Candido, Mário da Silva Brito,  Cassiano Nunes,  Malcolm Silverman (crítico norte-americano e grande estudioso da literatura brasileira), Luis Costa Lima,  Paulo Rónai, Alfredo Bosi,  Assis Brasil, Fausto Cunha,  Fábio Lucas, entre tantos outros.
       Não sei se farei o mesmo  com um simples artigo. Vou pensar. Contudo,  lhe aviso, leitor,  que,  pelo menos  para mim,  reescrever  um  texto perdido é uma tarefa  espinhosa. Jamais encontrarei  aquele  tom no qual a  exposição do tema foi vazado. Há, sim, algo de inspiração de mistura com  o espirito  racional no ato da criação de um texto literário.  Algo que no momento  em que escrevemos  vai  despontando em ideias e formas de construção verbal. 
      Aquele desejo de compor, da melhor forma possível, as orações, os parágrafos,  de escolher palavras e  ideias que nos afloram no processo da escrita, vai propiciar-nos o ritmo certo. O enunciado, soma   das palavras, das frases, das orações,  do parágrafo e deste aos outros  parágrafos, no conjunto, forma uma unidade de sentido, a  qual deve estar inextricavelmente    interligada   ao texto elaborado.
       Nada da escrita  é mero  escrever a esmo,  mas um processo  intelectivo em  que  as partes do texto completo,  do princípio (introdução) do meio (desenvolvimento) e do fim (conclusão) são processos  deliberados  onde predomina   a lógica  da textualidade. Contudo, o texto literário  não se exime,  no tempo  final da escrita, de um certo prazer do  dever cumprido com  amor e carinho, com a vontade  insopitável de  transmitir  com sinceridade  os pontos de vista, os argumentos convincentes,  a nossa visão sobre o tema  em exame. Substantivo, adjetivos, verbos, advérbios,  conectores, preposições, interjeições, palavras de situação, efeitos retóricos,  aqui e alia no texto,   confluem para que  ele seja a melhor parte  de nossa capacidade de realização no domínio  da difícil arte  da escrita.
       Pelo  visto,  como deve ter sido  penoso  e ao mesmo tempo agradável  haver  João Antônio recuperado  todos os passos   da reescritura  de seu memorável  conto. Só a vontade   irrefreável  poderia  levá-lo ao final  de sua empreitada. No tecido  textual  tudo foi  tomado em conta:  os personagens,  o tempo, o  espaço, os diálogos,  o desenvolvimento da narrativa,  os recurso  linguísticos,   rítmicos ( no contista paulista,  o ritmo musical, em muitos contos,  é uma  das características  de seu estilo  literário). Ora,  isso tudo  demanda  um  esforço hercúleo  para o trabalho da reescrita. 

       O que  se  deve ressaltar  nesse processo de reelaboração de um conto  longo e de alta qualidade  é o fato de que  a sua   segunda escrita  nos permite   aventar uma  hipótese: o contista  deve ter se superado,  quer dizer,  na reelaboração   da estrutura  de sua ficção é bem provável que  a segunda escrita  foi ainda  superior  à primeira tamanho foi o seu  esforço  despendido  no emprego da memória  graças à ideia central do tema,  à construção  de uma escrita,  cujas partes já se encontravam     internalizadas e prontas  a  gerarem  um  reduplicação  do esforço  inicial  primeiro. Mas,  no processo   da  reescrita  lhe coube  também  virtudes  pessoais  para a prática  da ficção e aqui se pode  levantar  uma outra questão: o talento do escritor.