Trote: a tradição da insensatez

Paulo José Cunha*

Qualquer trote é repulsivo, porque implica na imposição de constrangimento à vítima. E todo e qualquer constrangimento constitui violação aos direitos humanos (Artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: "Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante").

Desde a origem etimológica da palavra é perceptível o sadismo implícito na sua aplicação. A palavra existe em várias línguas (trote em espanhol, trotto em italiano, trot em francês, trot em inglês e trotten em alemão). E em todas elas significa originariamente a mesma coisa: um tipo nobre de marcha dos cavalos e outros animais de montaria, que, para aprendê-la, precisam ser adestrados à base de chicotadas e esporadas. Da mesma forma, o calouro é encarado pelo veterano como um bixo (rebaixado desde a grafia propositalmente errada da palavra) que precisa ser domesticado por meio de técnicas humilhantes e vexatórias.

A prática do trote remonta à Idade Média. Por razões profiláticas – evitar-se a propagação de piolhos e de doenças transmissíveis – os calouros tinham as cabeças raspadas e as roupas incineradas. No século XIV a profilaxia começou a abrir espaço à humilhação. Os calouros das universidades francesas e alemãs, além das cabeças raspadas, eram obrigados a beber urina e comer excrementos. Provavelmente a prática do trote chegou até nós pelos estudantes da elite brasileira que iam estudar na Universidade de Coimbra.

Os fatos recentes vividos pelos calouros da Universidade de Brasília, obrigados a ingerir bebidas fortes, a ponto de um deles ser internado em coma alcoólica, ou submetidos ao constrangimento de revelar preferências e posições sexuais, é apenas a recorrência de uma prática abominável e repulsiva. Não poucas vezes, em anos anteriores, registraram-se na UnB e em diversas outras instituições de ensino, práticas de trote humilhante e violento.

Aliás, trote humilhante e violento é redundância. Todo trote é humilhante. E, dependendo das convicções pessoais da vítima, pode se constituir em violência moral. Foi o que ocorreu com as estudantes da UnB obrigadas, algum tempo atrás, a chupar linguiças lambuzadas com leite condensado.

Mais recentemente surgiram os chamados trotes solidários. Na pretensão de substituir a humilhação do trote tradicional, inventaram-se formas, digamos, mais aceitáveis de se impor constrangimentos às vítimas. Agora, para incentivar a prática da solidariedade em vez da violência e da humilhação, os calouros têm sido obrigados a doar sangue, realizar trabalhos comunitários ou distribuir cestas básicas. Só que nenhuma dessas práticas retira do trote solidário o seu caráter original: impor um constrangimento à vítima. Doação de sangue é ato voluntário e humanitário, não pode ser imposto a ninguém, sob qualquer argumento. Igualmente, a realização de trabalho comunitário ou doação de cesta básica. São atos que até podem e devem ser incentivados, jamais impostos a quem quer que seja, por mais meritórias que sejam as justificativas.

Nem mesmo o argumento da tradição pode ser levantado em favor da permanência do trote no ambiente universitário. Tradição que implica humilhação e violência é condenada em todas as culturas. Há bem pouco tempo o mundo se mobilizou na condenação à pena de apedrejamento imposto à iraniana Sakiné, tradição milenar e repulsiva em alguns países árabes. Ninguém admite que em nome da tradição, recém-nascidos de algumas tribos indígenas, portadores de defeitos físicos, sejam eliminados logo após o parto. A tradição repugnante da extirpação clitoriana, praticada em países da África e da Ásia, tem sido motivo de condenação universal, com repreensões oficiais da própria ONU. Nas universidades brasileiras há diversos relatos de mortes, ferimentos e traumas psicológicos resultantes da tradição dos trotes violentos. A primeira morte em razão de trote violento, segundo consta, ocorreu na Faculdade de Direito de Olinda, Pernambuco, em 1831. Daí pra frente a "tradição" não parou mais.     

Tão cristalina constatação permite a conclusão de que trote - qualquer trote, em qualquer nível, sob qualquer argumento, qualquer que seja a sua natureza, violento ou humilhante, solidário ou beneficente - é indesejável e reprovável, pois traz embutidas em sua origem as marcas do sadomasoquismo e do aviltamento da condição humana. Numa comparação singela: quando recebemos um novo morador ou hóspede em nossas casas costumamos aplicar-lhe alguma humilhação a título de ritual de passagem? Ou, ao contrário, cuidamos de arrumar-lhe a cama e preparar-lhe o quarto, para que se sinta confortável e bem acolhido?

Portanto, e sem subterfúgios: está na hora de o trote  qualquer tipo de trote, inclusive o trote solidário - ser definitivamente proibido e banido dos rituais universitários. Brincadeira tem hora, diz o ditado. Mas a "brincadeira" do trote, não. É condenável a qualquer hora. E não tem nada de brincadeira. O correto é que os calouros sejam recebidos com boas-vindas, cama feita e mesa posta, assim como qualquer pessoa minimamente educada faz quando acolhe em sua casa um hóspede ou um novo morador.

*Paulo José Cunha é Jornalista e Professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília