Triela contra Pinocchio: a segunda temporada de "Gunslinger Girl"
Por Miguel Carqueija Em: 17/12/2012, às 15H59
(Miguel Carqueija)
Há filmes (ou desenhos) que já valem pelas cenas antológicas.
TRIELA CONTRA PINOCCHIO: A SEGUNDA TEMPORADA DE “GUNSLINGER GIRL”
Em 2008 o estúdio japonês Atland realizou, em 13 episódios, com direção de Rei Mano, a segunda série do extraordinário anime “Gunslinger girl”, cuja primeira temporada, pelo estúdio Madhouse, data de 2003. A história original é o mangá de Yu Aida.
Nesta segunda temporada (muito bem feita tecnicamente) a situação se adensa em torno de alguns personagens. O cenário é uma Itália alternativa, onde os “padanianos” ou movimento das Cinco Repúblicas, luta por separar o norte do país. Para combater o movimento separatista o governo formou uma agência secreta, que de fachada ostenta o título de “Bem-estar Social”. Na verdade utiliza meninas que, tendo estado á beira da morte em situações trágicas (como abuso sexual) e já não tendo família, foram transformadas em ciborgues, com implantes cibernéticos, sofreram lavagem cerebral e receberam treinamento com armas pesadas para servirem à organização, cada uma delas ficando ligadas a um dos agentes, o seu “fratello”.
Tendo perdido, de certa forma, o livre arbítrio, elas se afeiçoam aos seus “fratellos” e, entre si e com outras pessoas em situações normais, são gentis e sensíveis. Nos trabalhos de campo, porém, matam impiedosamente.
Se a primeira temporada destacou Henrietta, a segunda põe em relevo Triela, agora mais crescida, talvez com uns 11 anos: esticada, magra, elegante, vestindo em geral trajes masculinos e com rabo-de-cavalo duplo, á Sailor Moon. Do lado do inimigo aparece um rapaz bem apessoado, porém um matador implacável, que recebeu o nome de Pinocchio. Num dos primeiros episódios da série, num confronto entre as forças da organização e dos separatistas, Triela é derrotada por Pinocchio. Isto a deixa profundamente traumatizada, pois não podia aceitar ser derrotada por um ser humano normal, sem implantes cibernéticos.
A ação prossegue em tramas paralelas mostrando ora os agentes (José, Hersher, Marco etc.) e suas ciborgues (Henrietta, Rico, Beatrice, Triela etc.), ora os revolucionários (Cristiano, Franco, Franca, Pinocchio etc.) e percebe-se que tudo converge para a revanche que Triela deseja. Ela chegará quando Cristiano, caído em desgraça ante os chefões do movimento, recusa-se a fugir e, cansado de tudo, aguarda os acontecimentos em seu castelo, com os últimos seguidores. Ao saber disso Pinocchio dirige-se para lá, disposto a defender Cristiano (seu tio adotivo, que o salvou da morte) até as últimas consequências. Algum tempo depois, Franco e Franca (Caterina, seu nome antes de fazer parceria com Franco) resolvem se dirigir também ao local para tomar parte na briga. Logo a Organização do Bem-Estar Social está cercando o lugar e a batalha começa. Entretanto, Triela pedira carta branca para lidar com Pinocchio.
Está armado o cenário para a antológica revanche, o duelo final entre Triela e Pinocchio, no encerramento da segunda fase do seriado.
A luta é encarniçada, sangrenta, vertiginosa, difícil até de acompanhar com os olhos. Os dois inimigos usam de tudo o que podem: punhos, pés, móveis da casa, armas de fogo, armas brancas; e à proporção que o embate prossegue, atravessando vários cômodos do casarão e destruindo móveis e vidraças, vão ficando cobertos de ferimentos. O duelo avassalador começa no final do capitulo 12 e ocupa a maior parte do décimo-terceiro e último capítulo.
A determinação de Triela é tão poderosa que, contrariando o seu condicionamento (que faz dela uma espécie de marionete), pela primeira vez ela dá ordem e grita com seu “fratello”. Quando Hersher aparece em meio ao duelo, a menina grita para ele: “Vá procurar Cristiano!” o que, trocado em miúdos, significa: “Não se meta aqui! A briga com Pinocchio é toda minha!”. Surpreendentemente, Hersher respeita a decisão da menina e se afasta, indo procurar outros adversários.
A certa altura, enquanto se destroçam mutuamente, Triela e Pinocchio travam um rápido e nervoso diálogo. Inicialmente, a menina exclama: “Seu monstro!”. Motivada, provavelmente, pelo aparente absurdo de um ser humano comum, sem implantes cibernéticos, enfrentar uma ciborgue como ela, de igual para igual. Pinocchio responde ironicamente: “Qual de nós é o monstro?” Afinal, ela é que tem um corpo em parte artificial, além de ser uma criança assassina. Triela grita em resposta: “Você não entende nada! Esse caminho de luta é o único que eu tenho!” Realmente, ela não teve escolha, manipulada em seu corpo e sua mente. Por fim, Pinocchio ainda replica: “Então nós dois somos iguais”.
Esta é a profunda e impactante mensagem que perpassa toda a série e é explicitada nesta cena magistral: em muitos casos, as forças (ditas) da lei e da ordem, de um lado, e as forças da transgressão, do outro, são moralmente iguais.
Terrível.